Os números da covid no Brasil são assustadores. Estamos entre os dez países com maior número de mortes por milhão de habitantes. Em números absolutos, somos o segundo país do mundo em casos confirmados e em mortes. Os números da vacinação são decepcionantes: algo em torno de 10% da nossa população tomou as duas doses. Nosso sistema de saúde, como todos sabemos, está sobrecarregado. Nosso povo, como estamos cansados de saber, tem cada vez menos emprego, menos assistência e menos esperança.
Neste cenário – viva! – faremos a “copa américa”. A “festa” do futebol sul-americano. A orgia de cartolas e empresários e políticos nos camarotes dos nossos estádios vazios. Sim, vazios: é, aliás, o que se espera. Até porque ninguém alimenta a ilusão de que esta será uma festa do povo – de povo algum da América Latina. Nem mesmo para os jogadores será uma festa: os mais corajosos dentre eles já deixaram claro sua contrariedade. É apenas a festa dos podres poderes desse pobre Continente. Festa fúnebre. Orgia sobre os cadáveres de nossos povos.
Dizem que o governo brasileiro demorou dez minutos para responder à proposta da Confederação Sul-americana de Futebol. Pode-se imaginar o porquê. Foi provavelmente o tempo necessário para combinar tudo: os “direitos” do “sogro” de transmitir o evento, os “direitos” daqueles que intermediaram o acerto, os “direitos” de cartolas e empresários e políticos sobre os frutos do evento. Dez minutos é tempo bastante para eles se acertarem – afinal, eles não são muitos.
Muitos, centenas de milhões, somos nós. O povo perplexo diante dessa loucura macabra. O povo brasileiro, os povos sul-americanos, todos tremendo de indignação. Em meio à pandemia, em meio ao sofrimento e à morte, teremos que suportar as gargalhadas obscenas dos donos da festa.
Talvez não suportemos. Talvez se espalhe por nossas nações a nova cepa de um antigo vírus. Um vírus metafórico, que não traz doença alguma – ao contrário, um vírus que nos inculca a coragem. Já se veem casos dessa nova cepa pela América Latina. Já há povos contaminados pela coragem de transformar a indignação em luta. Talvez o futebol, nossa paixão comum, permita isso: esse bendito contágio. A “copa américa” pode ser o catalisador dessa “cepa américa”. E então, contagiados, talvez despertemos.
*Título inspirado num trocadilho do poeta Wagner Rengel, criado ou recriado ou simplesmente divulgado no “Abelheiro” de 31/05/2021.
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