Preparem-se pra ler duas palavras vazias, ao menos na acepção que lhes reserva este texto. Duas palavras presunçosas, boçais, cínicas. Mas centrais, paradoxalmente centrais, no discurso político atual. Portanto, decisivas à compreensão de nossa realidade. Duas palavras vazias mas incontornáveis: direita e esquerda.
A inegável importância dessas palavras sugere que nossa história política é um pêndulo. Ora pendemos prum lado, ora pra outro. Neste momento, ao que parece, a América Latina está novamente guinando à esquerda. Não surpreende. Esta é uma das regiões mais desiguais do mundo. Centenas de milhões de famintos suportam o escárnio dos ricos, que exploram – geração após geração – os nossos recursos (inclusive humanos) e esbanjam suas fortunas na outra margem do abismo social. A esquerda tem por princípio trabalhar pela redução dessa desigualdade. Se é de fato assim, será forte enquanto a América Latina for escandalosamente desigual – e obscenamente miserável.
A direita finge não saber disso. Ou finge acreditar na balela que diz que a desigualdade não é causa, mas efeito de nossos problemas. Mesmo assim, de quando em quando, ela abocanha o poder: o pêndulo não para, sempre vai e volta. Nesses momentos a direita nos convence, não sem boa dose de razão, de que a esquerda é corrupta e populista. Ela emplaca um canastrão qualquer que promete varrer a corrupção: um Collor, um Macri, um Piñera. E fica no poder até descobrirmos que a direita é tão ou mais corrupta que a esquerda, mesmo porque é mais entreguista. Sob a máscara canastrona aparecem os vermes plutocratas. Então nós voltamos a apostar na esquerda. E o pêndulo volta.
É o que parece estar acontecendo. Depois de uma onda de governos de direita, estamos vivendo agora a tendência inversa. Mas desta vez com uma intensidade inédita. Não é só que estamos guinando à esquerda. Essa guinada parece ser mais forte do que nunca. Sinal disso é a eleição de Boric. O Chile, desde a queda de Pinochet, é um país de governos centristas. Piñera puxou o pêndulo pra direita. Agora veio a reação contrária. Desde Alliende o país não elegia alguém com esse perfil ideológico. Com Boric, a esquerda latino-americana alcançou um feito histórico: cruzou a fronteira chilena.
O que explica essa guinada tão forte? A resposta observa uma razão rigorosamente newtoniana: a toda ação corresponde uma reação igual e contrária. A direita latino-americana pirou. Aliás, a direita ocidental pirou. Envenenada pelos valores mais subterrâneos, encharcados de preconceitos medievais e que pareciam ter apodrecido após o trauma das grandes guerras, a direita perdeu as estribeiras. Esticou a corda ao máximo. Assumiu publicamente a xenofobia, a intolerância religiosa, o supremacismo. E forjou as tantas figuras bizarras capazes de vocalizar toda essa podridão, que têm em Trump o grande modelo.
Não apenas Bolsonaro é uma dessas figuras. Kast, candidato da direita chilena que disputou a eleição com Boric, também é – ainda que não seja tão vulgar. A direita latino-americana abandonou sua histórica posição de proximidade com o centro (ainda que ocupada de forma muitas vezes artificial, como nas tantas vezes em que patrocinou golpes militares). Esta posição reforçava o compromisso com seu mais alto valor: o conservadorismo. Agora, ao escolher discursos e representantes extremistas, ela perdeu o “direito” de ser moderada. Exemplo disso é o aparente fracasso da candidatura de Sérgio Moro. Ele é o “caçador de corruptos”, o “bom mocinho”, o “queridinho do mercado”, o escambau. Mas não é Bolsonaro. Não diz as barbaridades que Bolsonaro diz. Não é tão radical. O eleitorado da direita brasileira não quer saber de Moro. Ela virou refém do monstrengo que criou.
Não surpreende, portanto, que a reação da esquerda seja tão forte. O pêndulo foi à extrema direita. Agora volta com tudo. Resta saber como a esquerda lidará com isso. Também ela pode aderir ao extremismo e, em última análise, relativizar compromissos democráticos. Ou não: pode aproveitar o momento com sabedoria, perseguindo seus princípios sem deixar de reforçar o papel das instituições políticas. Boric tem uma oportunidade rigorosamente histórica.
De fato, numa época ameaçada por extremismos, a grande virtude há de ser a moderação. É necessário assumir compromissos comuns: a democracia, o estado de direito, a dignidade do ser humano. É necessário mostrar respeito por todos, inclusive pelos adversários. É necessário reduzir a amplitude desse movimento pendular que nos joga de um lado a outro, impedindo que sigamos em frente.
A esperança é esta: que o avanço sobre a fronteira chilena seja um marco não da hegemonia da esquerda (nenhuma hegemonia é salutar na política), mas da derrocada das pretensões totalitárias que a direita ousa uma vez mais perseguir. Não encontraremos nosso rumo em nenhum dos extremos do espectros político. Direita e esquerda – no fundo, bem no fundo – são palavras vazias.
Este site usa cookies para que possamos oferecer a melhor experiência de usuário possível. As informações dos cookies são armazenadas em seu navegador e executam funções como reconhecê-lo quando você retorna ao nosso site e ajudar nossa equipe a entender quais seções do site você considera mais interessantes e úteis.
Cookies Necessários
Os Cookies Necessários devem estar sempre ativado para que possamos salvar suas preferências de configuração de cookies.
Se você desabilitar este cookie, não poderemos salvar suas preferências. Isso significa que toda vez que você visitar este site, precisará habilitar ou desabilitar os cookies novamente.
Comentários: