Opinião

A fronteira chilena

A fronteira chilena
Foto por Thiago Longo Marcarini

Preparem-se pra ler duas palavras vazias, ao menos na acepção que lhes reserva este texto. Duas palavras presunçosas, boçais, cínicas. Mas centrais, paradoxalmente centrais, no discurso político atual. Portanto, decisivas à compreensão de nossa realidade. Duas palavras vazias mas incontornáveis: direita e esquerda.

A inegável importância dessas palavras sugere que nossa história política é um pêndulo. Ora pendemos prum lado, ora pra outro. Neste momento, ao que parece, a América Latina está novamente guinando à esquerda. Não surpreende. Esta é uma das regiões mais desiguais do mundo. Centenas de milhões de famintos suportam o escárnio dos ricos, que exploram – geração após geração – os nossos recursos (inclusive humanos) e esbanjam suas fortunas na outra margem do abismo social. A esquerda tem por princípio trabalhar pela redução dessa desigualdade. Se é de fato assim, será forte enquanto a América Latina for escandalosamente desigual – e obscenamente miserável.

A direita finge não saber disso. Ou finge acreditar na balela que diz que a desigualdade não é causa, mas efeito de nossos problemas. Mesmo assim, de quando em quando, ela abocanha o poder: o pêndulo não para, sempre vai e volta. Nesses momentos a direita nos convence, não sem boa dose de razão, de que a esquerda é corrupta e populista. Ela emplaca um canastrão qualquer que promete varrer a corrupção: um Collor, um Macri, um Piñera. E fica no poder até descobrirmos que a direita é tão ou mais corrupta que a esquerda, mesmo porque é mais entreguista. Sob a máscara canastrona aparecem os vermes plutocratas. Então nós voltamos a apostar na esquerda. E o pêndulo volta.

É o que parece estar acontecendo. Depois de uma onda de governos de direita, estamos vivendo agora a tendência inversa. Mas desta vez com uma intensidade inédita. Não é só que estamos guinando à esquerda. Essa guinada parece ser mais forte do que nunca. Sinal disso é a eleição de Boric. O Chile, desde a queda de Pinochet, é um país de governos centristas. Piñera puxou o pêndulo pra direita. Agora veio a reação contrária. Desde Alliende o país não elegia alguém com esse perfil ideológico. Com Boric, a esquerda latino-americana alcançou um feito histórico: cruzou a fronteira chilena.

O que explica essa guinada tão forte? A resposta observa uma razão rigorosamente newtoniana: a toda ação corresponde uma reação igual e contrária. A direita latino-americana pirou. Aliás, a direita ocidental pirou. Envenenada pelos valores mais subterrâneos, encharcados de preconceitos medievais e que pareciam ter apodrecido após o trauma das grandes guerras, a direita perdeu as estribeiras. Esticou a corda ao máximo. Assumiu publicamente a xenofobia, a intolerância religiosa, o supremacismo. E forjou as tantas figuras bizarras capazes de vocalizar toda essa podridão, que têm em Trump o grande modelo.

Não apenas Bolsonaro é uma dessas figuras. Kast, candidato da direita chilena que disputou a eleição com Boric, também é – ainda que não seja tão vulgar. A direita latino-americana abandonou sua histórica posição de proximidade com o centro (ainda que ocupada de forma muitas vezes artificial, como nas tantas vezes em que patrocinou golpes militares). Esta posição reforçava o compromisso com seu mais alto valor: o conservadorismo. Agora, ao escolher discursos e representantes extremistas, ela perdeu o “direito” de ser moderada. Exemplo disso é o aparente fracasso da candidatura de Sérgio Moro. Ele é o “caçador de corruptos”, o “bom mocinho”, o “queridinho do mercado”, o escambau. Mas não é Bolsonaro. Não diz as barbaridades que Bolsonaro diz. Não é tão radical. O eleitorado da direita brasileira não quer saber de Moro. Ela virou refém do monstrengo que criou.

Não surpreende, portanto, que a reação da esquerda seja tão forte. O pêndulo foi à extrema direita. Agora volta com tudo. Resta saber como a esquerda lidará com isso. Também ela pode aderir ao extremismo e, em última análise, relativizar compromissos democráticos. Ou não: pode aproveitar o momento com sabedoria, perseguindo seus princípios sem deixar de reforçar o papel das instituições políticas. Boric tem uma oportunidade rigorosamente histórica.

De fato, numa época ameaçada por extremismos, a grande virtude há de ser a moderação. É necessário assumir compromissos comuns: a democracia, o estado de direito, a dignidade do ser humano. É necessário mostrar respeito por todos, inclusive pelos adversários. É necessário reduzir a amplitude desse movimento pendular que nos joga de um lado a outro, impedindo que sigamos em frente.

A esperança é esta: que o avanço sobre a fronteira chilena seja um marco não da hegemonia da esquerda (nenhuma hegemonia é salutar na política), mas da derrocada das pretensões totalitárias que a direita ousa uma vez mais perseguir. Não encontraremos nosso rumo em nenhum dos extremos do espectros político. Direita e esquerda – no fundo, bem no fundo – são palavras vazias.

Vítor Véblen

Vítor Véblen é iniciado em literatura política. Viveu em Chicago, onde estudou economia. Mora atualmente em Joinville.

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