Opinião

Ucrânia – parte final: a modernidade esgotada

Ucrânia – parte final: a modernidade esgotada
Arte sobre a tela "Ocean Greyness" de Jackson Pollock

Eis-me aqui: no sul dum pobre país no sul do mundo, num ponto ínfimo do vasto caudal da história da colonização europeia, na borda evanescente desse fenômeno que, ao nos tocar, nos faz humanos: a linguagem. Eis-me aqui: na frente da tela do computador – a tela branca, vazia, à espera de alguma conclusão sobre a guerra, o mundo, o tempo. Eis-me aqui, enfim: solitário e impotente diante de tamanho desafio. Eu escrevo: esta é a premissa tristemente cartesiana deste ensaio. E a guerra, o mundo, o tempo? É o horizonte que esta minha tentativa atravessa – talvez luminosa como um raio, talvez irrisória como um risco.

O risco e o horizonte: metáforas opacas. Um é a consciência e seu caminho – quando muito, a clareira dum raio. Outro é a realidade que nos une (nós, humanos) linguisticamente, tão vaga em sua essência inalcançável. São ambas, as metáforas, os pressupostos solitários desta análise. Tudo mais, meus dados e meus insights, meu método e minha prosa, minha coragem ou meu delírio, tudo vacila sobre aqueles dois pilares cambaleantes.

Donde minha humílima – e tristemente socrática – conclusão: nada sei. Saber, aqui, seria possuir verdades sobre a guerra, o mundo, o tempo. Mas um mundo em guerra é o horizonte dum tempo sem verdades. Eu poderia abandonar a pretensão de ser verdadeiro: minha prosa seria poesia, meu método seria só a busca do encanto. Mas então este ensaio seria uma fraude: ele anunciou desde o início a obsessão pela verdade. Alguma conclusão devo alcançar, portanto. Alguma que eu mantenha como um compromisso, que eu subscreva com meu nome – e que diga, afinal, algo mais que “nada”.

A guerra total pervade o mundo porque captura nossa comunicação. Nunca essa captura foi tão plena. A tinta negra dos poderes em conflito se alastra pelos mais caudalosos fluxos linguísticos, mas também se capilariza pelos mais sutis. Nosso tempo é marcado por uma comunicação quase inteiramente mediatizada por recursos “capturáveis”: as forças em guerra são capazes de influenciar o que lemos, o que vemos e ouvimos, e mesmo então o que dizemos. O sistema em que tudo isso se insere não nos permite alcançar um espaço exterior em que seríamos insuscetíveis a seu funcionamento. Não existe o que chamávamos, na inocência de nossa juventude, de liberdade. Submersos no oceano desse sistema, jamais emergimos pra respirar.

Tenho consciência de que os termos básicos deste ensaio estão se tornando cada vez mais abstratos. No início eu falava de países e de seus líderes. Depois, de opressores e de oprimidos. Agora, de forças e de sistema. Tenho consciência de que esta última palavra afasta qualquer tentativa de personificação: não há homens a apontar, não há culpas a reconhecer – só há o sistema, anterior a toda consciência, a assimilar e determinar toda a realidade. Esse é o horizonte tristemente luhmaniano que afinal descortino.

A guerra é a chave desse sistema. A energia expansiva de seu núcleo. A força gravitacional que faz tudo girar em sua volta. Não apenas porque, como já dito, ela determina os aspectos políticos, econômicos e culturais das diversas partes envolvidas no conflito – e, por extensão, das nações do mundo. Mas sobretudo porque aniquila nossa única esperança – a esperança de alcançar a verdade através da razão.

O sujeito racional, a grande dádiva da modernidade, supõe que ele próprio seja capaz de conhecer a verdade. Não porque Deus ou a tradição lha conceda, mas porque lha revela a razão. Descartes ergueu sobre esse sujeito uma torre babélica capaz de alcançar tesouros celestes. Kant encontrou, no alto da torre, a paz universal. A época das luzes fez da razão humana o princípio de nossa organização moral e social. A consciência individual tornou-se a instância política básica. Os regimes democráticos impuseram-se como um desdobramento lógico e inegociável. As constituições dos estados de direito firmaram a meta de fazer os homens iguais em dignidade.

O tempo atual, sob o signo da guerra, segue rumo à destruição dessa utopia. O conflito impõe a união desesperada de uns ao exigir o ódio desesperado a outros. Nesse desespero a razão sucumbe. Os velhos modos de alcançar a verdade retornam à cena. O fervor religioso, as tradições antigas, as primitivas formas sociais – tudo isso fortalece aquela união e aquele ódio. Putin e Zelenski posam aos seus como homens fortes, tradicionais e de fé. Os atores extremistas, mesmo nas mais sólidas democracias, enfim chegam ao centro da cena. Os medos, os desejos reprimidos, os egoísmos antes inconfessáveis – tudo isso se cristaliza em valores abertamente assumidos na arena política. A xenofobia, a misoginia, o racismo, a vontade de menosprezar ou mesmo de exterminar os desiguais – tudo isso são bandeiras dum discurso dum protagonismo assustador. Não se trata apenas do ressurgimento do fascismo. Parece mais o esgotamento da modernidade: sem vigor para seguir no caminho da razão, a humanidade regressa a um misticismo medieval. A civilização dá um passo atrás. Um enorme passo: retrocedemos cinco séculos.

Hegel disse a respeito da razão: “aqui está a rosa, aqui vamos dançar”. Ele a contemplava com “regozijo”. Ele cedia à “necessidade interior de conceber e conservar a liberdade subjetiva no que é substancial”. Nossa época prenuncia o fim da dança hegeliana; e então, bem longe da rosa, um mundo em que a liberdade será uma velha visão abandonada.

Eis-me aqui: diante da guerra, só posso encarar o futuro como um oceano cinzento de olhares perdidos – e esta é a imagem tristemente pollockiana que me resta.  

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