Vamos rever nossos passos. Primeira premissa: não há uma verdade sobre a guerra – é sobretudo ela, a verdade, que está em disputa. Segunda: apesar disso, temos que buscar compreendê-la – não podemos ignorar um fato tão decisivo de nossa época. Terceira: essa compreensão supõe uma abordagem racional que busque verdades “além do espaço discursivo da guerra” – “se a verdade supõe a razão, a razão supõe a paz”. O rigor de nosso método permitiu poucas conclusões sobre os fatos em curso. Tivemos que recorrer – confessadamente – a impressões. Umas e outras, conclusões e impressões, conduziram a duas hipóteses: a coesão do ocidente e o alinhamento das potências orientais. No horizonte que se abriu vimos a guerra mundial.
Essa projeção talvez seja excessivamente esquemática. O cenário que vislumbramos apega-se a uma simetria que soa artificial: parece inscrito na moldura de noções obsoletas – ou, no melhor dos casos, de clichês historiográficos. As categorias básicas de nossa hipótese – a guerra mundial, a dicotomia da disputa, o ocidente e oriente – são tão duvidosas quanto a tal “verdade sobre a guerra” que rejeitamos desde o início. Pode não haver a projetada disputa entre ocidente e oriente: a “coesão” daquele é tão discutível quanto o “alinhamento das potências” deste outro; e, ainda que confirmássemos tais suposições, nada assegura que elas seriam duradouras. Pode não haver a citada dicotomia: talvez a guerra tenha mais de dois lados. Pode não haver sequer uma “guerra da Ucrânia”: talvez a invasão russa seja só mais uma página de uma grande guerra que já começou em outras partes do mundo e que se expandirá a outras tantas.
Talvez o mais grave erro de nosso método esteja nas polaridades que assume. Especialmente esta: a guerra e a paz. Talvez a projeção mais adequada deva excluir a última alternativa. E então assumir esta outra: a guerra total e permanente. Surkov, já citado, fala disso há tempo. Segundo esta hipótese, a Rússia não deflagrou na Ucrânia uma guerra contra o ocidente; ela apenas mantém a estratégia belicista que adota há anos – na Chechênia, na Geórgia e na Criméia, por exemplo. Aliás, não só a Rússia: os EUA também – e aqui os exemplos são mais numerosos. Sempre segundo essa hipótese, as potências atuais assumem sua condição proeminente num contexto bélico: aí exercem de modo inapelável seu poder sobre as demais nações. Além disso, nesse contexto elas engendram sua realidade interna: a guerra nutre suas economias, organiza suas sociedades, sustenta suas elites.
Se quisermos insistir em clichês historiográficos, poderíamos dizer que nossa época está sujeita ao modo de produção belicista. A guerra determina os aspectos principais da organização humana: os fluxos de riquezas, as instâncias de poder, a produção da cultura e a exploração da natureza. Nossa existência abre-se num horizonte iluminado por Marte. Pertencemos à numerosa classe dos soldados (e das vítimas) sujeitos aos senhores da guerra. Olhe em volta: estamos todos perdidos lutando em sangrentos conflitos.
O espectro belicista é tão potente e pervasivo que corroi as mais pétreas noções da geopolítica. Nações, religiões, povos – tudo isso são palavras que exercem no máximo a função de armas: também a linguagem, claro, é uma face da guerra. Todas essas palavras, e tantas mais, estão nas mãos dos senhores: elas são peças da máquina em que nos inserimos, sempre tão prestativos, e a que nos submetemos, sempre tão dóceis.
A guerra total e permanente, em sua essência, não considera “bandeiras”, “crenças”, “raças”. Pode-se supor que o conflito entre Rússia e Ucrânia seja apenas o sintoma superficial de causas profundas e alheias aos fatores que definem uma e outra como nações. Pode-se supor que China e EUA, potências que parecem estar em cada lado do conflito, talvez comemorem abraçados as divisões que ele instaura e os movimentos que ele autoriza. Pode-se supor que esse novo episódio da guerra seja só mais um ato da peça com que os senhores nos iludem. Não está nas alturas a popularidade dos líderes que protagonizam a peça? Não há aí, em cada uma das potências envolvidas, a ocasião propícia para dar contornos precisos às suas instâncias de poder? Não é a guerra o pretexto ideal pra derrubar os diques democráticos que represam aspirações totalitárias espalhadas por todo o mundo? Sim, a premissa sobre a função central da guerra em nossa época leva a hipóteses tão distantes que soam como teorias conspiratórias. Talvez devêssemos abandonar a suposição de que somos manipulados por elites opacas. Excluir de nossa peça esses personagens que atuam como semideuses sombrios – os senhores da guerra. Esquecer a divisão da humanidade em classes – os poucos que dominam e os outros que padecem. Sim, talvez devêssemos. Mas ainda assim restaria, no palco vazio, a grande máquina que engendra a civilização atual. E, no centro fumegante da máquina, a guerra.
A hipótese aqui assumida não permite esperanças. Não há um lado que possa vencer. Não há uma verdade, ensolarada e consumativa, que trará a paz. Nesta nossa nova projeção, em que um conflito pervasivo e assimétrico ocupa inteiramente nosso futuro, não há sentido em falar de paz. A função da guerra é apenas perpetuar-se. E a nós, que função nos resta?
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