Opinião

Ucrânia – parte 3: a aurora do oriente

Ucrânia – parte 3: a aurora do oriente

Considere esta hipótese: a China está alinhada com a Rússia. É bem plausível, pra dizer o mínimo. Todos sabemos que ambos os países, dias antes da invasão da Ucrânia, firmaram uma “aliança sem limites” e mencionaram – com a ênfase possível – que “se opõem a uma expansão da Otan”. Também sabemos das rusgas diplomáticas – pra dizer, de novo, o mínimo – entre China e EUA; e sabemos que a invasão da Ucrânia criou entre EUA e Rússia bem mais que rusgas; logo talvez valha aqui a velha máxima: o inimigo do meu inimigo é meu amigo. Finalmente, todos vimos, sem surpresa, que a China jamais votou contra a Rússia quando as Nações Unidas deliberaram resoluções a respeito da guerra de Putin.

Não só a China: também a Índia, o Irã e o Paquistão. Nações poderosas que, apesar das desavenças, alinharam-se quanto ao ponto. Isso sem contar outros trinta países que estão na órbita de influência de algum desses quatro gigantes ou da própria Rússia. A hipótese que consideramos parte desta premissa: o alinhamento das potências orientais. Se projetamos a guerra e seus desdobramentos ao somar as forças de um lado e de outro, então essa hipótese leva nossa projeção a extremos apocalípticos.

Nenhuma novidade nisso. Diante de uma guerra em que a Rússia desafia o ocidente e líderes de potências nucleares trocam insultos, o apocalipse é uma óbvia possibilidade. Basta que alguém – Putin ou Biden, entre outros – aperte o botão vermelho. Mas tal possibilidade, exatamente por ser apocalíptica, é apenas retórica. Não faz sentido uma guerra que extinga a humanidade. Não faz sentido um conflito em que todos acabem aniquilados. Ninguém apertará o botão vermelho: no máximo haverá alguém tão louco que pode convencer os outros de que é capaz de apertá-lo – e assim vencer a guerra.

Mas a loucura não deve ser o dado em que basear nossa projeção da guerra. Se as hipóteses consideradas assumem a coesão do ocidente e o alinhamento do oriente, devemos extrair consequências mais razoáveis dessas premissas. Melhor ainda, devemos considerar aquelas que já estão se produzindo na Ucrânia e além: em especial, os desdobramentos econômicos da guerra. As sanções impostas à Rússia abriram uma cratera oceânica no comercial internacional. O país é grande fornecedor de bens elementares: petróleo, gás, minérios. As grandes cadeias produtivas são abaladas em seus pilares. O ocidente, que impôs as sanções, ainda não demonstrou a capacidade de sobreviver sem esse fornecimento. Por outro lado, embora as sanções certamente sejam um golpe duro, podem não ser bastantes a demover a resistência dos russos: Napoleão e Hitler provavelmente os golpearam com ainda mais contundência. Mais que tudo: podem as sanções simplesmente aprofundar o abismo entre ocidente e oriente, numa sucessão de golpes e contra-golpes cada vez mais vastos e articulados. Estarão dadas, neste caso, condições ideais pra um conflito abertamente “mundial”.

É lícito supor que tais condições não apenas sejam previstas, mas mesmo pretendidas. A desintegração – inclusive econômica – do mundo permitirá um novo arranjo de forças. O objetivo dos senhores da guerra pode não ser a riqueza das nações, como diria Smith, mas o poder dos impérios. Se falávamos dos desdobramentos econômicos da guerra, agora tratamos basicamente de geopolítica. Ou melhor: de imperialismo.

Há pouco mais de um século os impérios ocidentais – o britânico, em especial – submetiam o mundo. A Índia e a China, entre outras nações, foram sujeitas à mais ultrajante humilhação de suas histórias milenares. A primeira grande guerra foi o começo do fim da “era dos impérios”, segundo a eurocêntrica expressão de Hobsbawm. Um século mais tarde, outro conflito mundial pode refundar uma ordem geopolítica retalhada por poderes imperialistas. Mas agora não apenas ocidentais.

Detalhe crucial: esta projeção das consequências da guerra contempla aspirações que soam legítimas. Não há nada de errado em se opor ao imperialismo americano, que se espalha – monocrático e opressivo – desde o fim da guerra fria. É compreensível a luta por um mundo multipolar. É natural que o oriente, ao se erguer pra essa luta, julgue viver a aurora de uma longa noite vivida sob o jugo ocidental. Se nossa hipótese é correta, se as grandes nações da Ásia se articulam contra a hegemonia euro-americana, então a guerra terá seu apelo.

Ainda assim será a guerra. E tanto mais perene e pervasiva quanto mais forte esse apelo soar. Surkov, a mente por trás de Putin, há muitos anos já falava de uma guerra total e permanente. Se a história realmente nos conduz ao confronto entre ocidente e oriente, então nossa projeção é de fato apocalíptica: ou nosso futuro será interrompido pela luz de uma hecatombe, ou caminhará indefinidamente a um horizonte sempre mais negro.

Vítor Véblen

Vítor Véblen é iniciado em literatura política. Viveu em Chicago, onde estudou economia. Mora atualmente em Joinville.

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