A gata de Paola: breve tentativa de abordar os direitos dos animais (parte 3)
Publicado por Victor Emendörfer Neto
em
// Direito
Ela vê seu reflexo na tela escura do computador. Há tempo que não toca no teclado: deteve-se na encruzilhada de um vasto parágrafo. Seus dedos desviam-se, uma vez mais, em busca da taça de vinho. Um outro gole talvez abra uma clareira na selva de hipóteses. De repente ela toma um susto: sua gata pisa sobre o teclado. A tela se ilumina. O texto novamente abre seu horizonte vertiginoso. Ela e a gata trocam um velho e conhecido olhar. Então em voz alta, num leve delírio que lhe permite o bom malbec, pergunta à felina: “que direito tens de fazer isso?” E, sorrindo, insiste: “vai, me diz, que direitos tens?” A gata apenas ronrona. Sim: ronrona. O mesmo verbo que Lewis Carrol pôs nos lábios de Alice diante do espelho: os gatos nunca dizem sim ou não – “whatever you say to them, they always purr”. Ela é forçada, uma vez mais, a admitir: sua gata não conhece a existência do texto, da imensa selva de hipóteses, da questão. Diante da tela, Paola está só.
Também a cena descrita é uma hipótese. Não posso afirmar o diálogo entre Paola Hakenhaar e sua gata. Mas não tenho dúvida de que ela tem enfrentado, sempre mais intensamente, essaquestão. Seu último texto, aqui na Abertura, dá mostras da intensidade desse enfrentamento. Paola aborda meus dois artigos anteriores que, por razões ainda obscuras pra mim, propuseram a tal questão. Ela os esquadrinha e os enriquece e lhes censura – com a delicadeza do ourives de Bilac – os defeitos que deveras têm. Darwinn Harnack, outro amigo que há muito reflete sobre o tema, disse bem: foi um tapa de luva de pelica. É um bom trocadilho: pelica é a pele dos gatos.
Mas talvez o bom Darwinn esteja só me provocando. Na verdade, há pouca – se alguma houver – divergência entre mim e Paola: seu texto complementa os meus. Ela traz ao palco o Sr. Direito: “um sujeito homem, bem burguês, de terno e gravata, um tanto quanto cafona”. Achei irretocável a descrição do personagem, especialmente a tônica em sua masculinidade pernóstica. Talvez eu lhe acrescentasse um atributo: a velhice, a senilidade – o Direito é um senhor caduco. Além disso, já que nos permitimos criar personagens, eu cogitaria outras duas: a Senhorita Razão e a Dona Sociedade. Em todo caso, aquele personagem de Paola me foi utilíssimo diante de uma dificuldade que sempre tenho neste espaço: tratar o “Direito” – o sistema, a ciência, a instituição social – como o sujeito de uma oração: o “Direito” é assim, o “Direito” é assado. Às pessoas versadas nas ciências jurídicas, essa construção frasal pode soar bastante corriqueira; aos demais, decerto não. Por isso escrevo a palavra com D maiúsculo. Sei bem, desde que conheci e.e. cummings (em minúsculas), o quanto pode doer a letra maiúscula mal empregada. Mas não me restou alternativa: eu tinha que mostrar ao público a diferença entre Direito e direito.
É precisamente quanto a esta palavra – direito, com ‘d’ minúsculo – que Paola parece divergir de mim. Citando Maria Alice da Silva, ela sugere que “o direito animal deve ser compreendido enquanto direito moral, político e jurídico, reconhecendo-se nessa compreensão a vulnerabilidade e a liberdade como condições para se ter direitos”. Esta sugestão supõe uma afirmação, feita pouco antes, de enorme significado: “a consciência humana é distinta da consciência animal, porém, negar a consciência animal para afirmar uma pretensa superioridade humana soaria presunçoso. Ou como diria Márcia, pernóstico.”
Insisto: não há divergência entre mim e Paola. Não nego a consciência animal; ao contrário: afirmei que os animais são capazes de algo tão sublime quanto a felicidade e a tristeza – sentimentos que supõem a ‘consciência’ (eu não ousaria – e não conseguiria – descrever a acepção precisa desta palavra nesta frase; mas aprecio e recomendo aquela que Paola implicitamente empresta de Montaigne). Tampouco eu cometeria o erro de afirmar a “pretensa superioridade” da “consciência humana”: apenas afirmei que o Sr. Direito costuma reconhecer como ‘sujeito’ somente quem pode ser consciente de sua existência – bem claro: consciente da existência do próprio Direito (e dos próprios direitos). Finalmente, eu não neguei que os animais devam ter direitos: apenas não fui tão longe; ou melhor: não ousei afirmá-lo categoricamente.
Podemos falar, claro, em direitos dos animais. Há várias direções a seguir sob esse impulso. Pode-se tentar uma construção metafórica: animais ‘personificados’, com nome e domicílio, com necessidades e interesses a serem administrados por tutores. Pode-se tentar um regramento essencialista, fazendo-os titulares de direitos naturais: a liberdade, a integridade física, psíquica e moral, e a vida. Pode-se ousar conceitos novos: por exemplo, o direito de não sofrer a opressão do homem. O Sr. Direito se alimenta de linguagem. Basta lhe empurrar palavras goela abaixo.
Mas então sofreríamos, ao lançar essas hipóteses, o ataque cáustico da Senhorita Razão. Ela apontaria para Dona Sociedade e diria: “a quem vocês querem enganar? Não veem os animais sujeitos à opressão absoluta? À mais kafkaniana supressão da liberdade? À mais incisiva e pervasiva sujeição física, psíquica e moral? À mais cínica indiferença às suas vidas contabilizadas aos milhões, todos os dias, nos abatedouros? E tudo isso não como um fenômeno marginal, mas rigorosamente central no contexto do que chamam de civilização?” A Senhorita Razão, após recuperar o fôlego perdido em sua exaltação, finalmente arremataria: “não é a civilização senão isso, o perpétuo processo de aprender a sujeitar a natureza aos interesses humanos? E não é o Direito um produto da civilização?”
Seriam palavras duras. Poderíamos, reagindo a elas, tentar conceber uma ética. Poderíamos emprestar, para esta, uma personagem: eu a imagino uma jovem luminosa. Poderíamos abrir, sob a luz dessa ética, um outro horizonte civilizatório, diverso daquele cruelmente descrito pela Senhorita Razão. Mas também essa ética estaria presa à nossa condição humana: a consciência individual é a única terra onde ela pode germinar. Ainda que rejeitássemos a centralidade da nossa existência, ainda que nos puséssemos no mesmo plano dos outros seres, ainda que reconhecêssemos a insignificância periférica do ponto que ocupamos no espaço e no tempo, ainda assim só teríamos esse ponto: é a parte que nos cabe desse latifúndio.
Esse ponto representa a premissa básica da metafísica ocidental: a condição do sujeito diante do objeto. Somos, cada um, o sujeito cognoscente. Tudo – o mundo, o tempo, cada ente cognoscível (e mesmo o incognoscível, segundo o paradoxo do Drummond) – é, diante desse sujeito, mero objeto do conhecimento. De todo esse conhecimento que compartilhamos no palácio da linguagem, de tudo isso que chamamos cultura, nada vai além de nós. Como diz a famosa sentença sartriana: “nós estamos sobre um plano onde há somente os homens”. Os seres humanos estamos condenados, na cela dessa metafísica, à mais absoluta solidão. Exatamente como aquela que Paola experimenta ao propor a questão à sua gata.
Não há saída, então? Claro que há. A Senhorita Razão não evita que um impulso íntimo nos sopre aos ouvidos certas verdades intuitivas. De repente está claro: precisamos ser sensíveis à condição existencial dos animais, precisamos combater a crueldade que lhes atinge, precisamos superar definitivamente a visão que os descreve como coisas. Tudo muito claro: diante do sistema que se ergue baseado na opressão dos animais, podemos combatê-lo – como tão exemplarmente fazem Paola e Darwinn – e ser, assim, mais uma contramola que resiste. Podemos enfim, sob o influxo daquelas verdades intuitivas, propor avanços e abrir no horizonte um rasgo de esperança. Podemos até alimentar uma utopia. Nenhum mal nisso: é apenas nossa vida assumindo um sentido.
Volto à cena hipotética. Paola põe de lado a taça vazia, recosta-se na cadeira e estabelece com sua gata uma comunicação plena de sentido: ela compreende, uma vez mais, que a felina é digna da sua mais alta consideração. Então toca o teclado e a tela se acende: na encruzilhada daquele vasto parágrafo abre-se, luminoso, um rumo.
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