Opinião

Paola Hakenhaar – A Gata de Montaigne: um contraponto à questão dos direitos animais

Paola Hakenhaar – A Gata de Montaigne: um contraponto à questão dos direitos animais

Há dois textos, escritos pelo colunista Victor Emendörfer Neto, aqui na Abertura, intitulados como uma tentativa de abordar a questão dos direitos animais. Nos textos, Victor dedica-se a responder à questão sobre o direito ser capaz de dar personalidade a empresas – uma ficção jurídica – sendo incapaz de reconhecer direitos aos animais, “cuja existência é tão real quanto a nossa, a dos seres humanos.”

Como leitora atenta, tanto no texto da gata de Baudelaire (parte I), quanto no texto da gata de Derrida (parte II), reconheci ideias excelentes, mas também identifiquei a necessidade de algumas críticas. Ressalto que são críticas ao tema, sobretudo ao direito. Para tanto, convido a gata de Montaigne para se juntar a esse balaio de gatas para um contraponto animalista.

Primeiro, um combinado. Só siga na leitura desse texto depois de ler os dois textos de Victor. As gatas que precedem, merecem deferência.

O direito é oriundo de uma tradição antropocêntrica, permeado pela concepção kantiana que diferencia os entes do mundo a partir de duas categorias: pessoas e coisas, ou seja, entes que possuem dignidade e entes que podem ser precificados, respectivamente. Na base desta concepção do direito está presente o conceito de relação jurídica que só pode acontecer entre sujeitos de direitos.

Essa concepção do direito fundamenta a tradição civilista do direito brasileiro que entende que os animais não humanos são considerados coisas, não sendo possível estabelecer relações jurídicas e por isso não podem ser considerados sujeitos de direitos.

A primeira explicação que Victor apresenta à questão sobre o direito ser capaz de dar personalidade a empresas, sendo incapaz de reconhecer direitos aos animais, seria uma explicação lógica. Segundo Victor, empresas possuem personalidade jurídica, reconhecida pelo direito, em razão da decorrente separação patrimonial. O autor explica muito bem, inclusive considerando a origem instrumental do direito e sua funcionalidade em uma sociedade capitalista.

Minha primeira questão: seria o reconhecimento da personalidade jurídica a questão fulcral para o direito reconhecer a alguém a titularidade de direitos? 

Pensando na ideia da instrumentalidade do direito, minha leitura me conduz à outra questão. A serviço de quem este senhor trabalha? Quando me refiro a “senhor”, falo do Direito com “D” maiúsculo, do Excelentíssimo, do Digníssimo Doutor Direito.

Nem apresentei a gata de Montaigne ainda e já vou pedir licença para contar uma breve história. Há pouco mais de 10 anos, eu estava decidida que seguiria o caminho da educação, assim como minha mãe e como eu sonhava desde os tempos de menina. 

Minha paixão: direito penal. Meu amor: criminologia crítica. Meu pesadelo: direito empresarial. Minha escolha de curso: Pós-graduação em direito penal e processual penal empresarial. Não há espaço suficiente nesse artigo para eu explicar a incoerência revelada nesse parágrafo, mas o fato é que este curso foi uma das experiências mais marcantes da minha vida acadêmica. Daquelas boas, que deixam saudades. Tive aula com professores inesquecíveis, incríveis e generosos. Victor foi e é um deles. Leonardo Schmitt de Bem com sua aula definitiva de dosimetria da pena. Leonardo é uma dessas almas generosas. Todos foram e seguem sendo necessários.

Contudo, foi na aula da única professora mulher do curso que fui provocada a criar e a descrever uma imagem do direito. Sim, daquele senhor com “D” maiúsculo. Apesar da ultrajante desigualdade de gênero que o quadro docente revelava, e isso já seria um “belo” retrato do direito, o exercício tinha outro propósito didático. Eu nunca tinha sido instada a descrever como seria o direito se ele fosse um sujeito. 

Professora Márcia Arendt provocou todos da turma a descrever o direito e minha descrição foi a seguinte: um sujeito homem, bem burguês, de terno e gravata, um tanto quanto cafona, dotado de todo o saber e de toda a racionalidade, portador da verdade, capaz de dizer o que é justo. Um baita. O cara! Toda ironia do universo está autorizada para ler esta descrição, porque também estava presente na concepção da imagem que tenho do sujeito.

O exercício não acabou nessa descrição de aparência simbólica e cheia de significados. A professora continuou, mirou a porta da sala de aula (ah que saudades das aulas presenciais) e nos perguntou: “Se o sujeito-Direito entrasse por aquela porta, como ele entraria? Como se comportaria? Qual seria o comportamento dele nas relações? Como o sujeito-Direito lidaria com os conflitos?”

A história era para ser breve – tem a gata de Montaigne ainda, eu sei – então vou direto à palavra dita por Márcia Arendt que nunca esqueci: O direito é pernóstico. Seu comportamento seria (é) de um sujeito presunçoso, pretensioso, vaidoso. Aquele tipo de cara que se supõe melhor, mais bonito, superior, mais inteligente, mais capaz que os demais. Conhecem esse tipo? Tem um tanto por aí, eu garanto.

Carol Smart fala sobre a capacidade dos feminismos em desafiar, permanentemente, o poder do direito e argumenta que há uma congruência entre o direito e o que pode ser chamado de “cultura masculina”, e por essa razão o direito deve ser objeto para o trabalho feminista, não apenas para conseguir reformas jurídicas, mas para desafiar um significante tão importante do poder masculino.

O direito cria ficções e seu poder de estabelecer institutos, criar normas, leis, regular o funcionamento da sociedade é instrumental, se afina ao sabor de interesses forjados por uma cultura patriarcal e sob a lógica da dominação masculina.

No texto da gata de Baudelaire, Victor faz referência a Habermas e à ideia da razão autorreferencial presente no direito, pela qual se compreende que o sujeito é criado à imagem e à semelhança do homem ocidentalizado e que tudo em volta do homem é objeto. O quanto que o direito evoluiu desde Habermas? Acho que pouco. O objeto ainda é coisa e como coisa não é titular de direitos. E a espécie diferente, é coisa? A raça que não pertenço, é coisa? A mulher, é coisa? A natureza, é coisa também? 

Recuperando a minha primeira questão, eu diria que não seria o reconhecimento da personalidade jurídica a questão fulcral para o direito reconhecer a alguém a titularidade de direitos. Isto explica o porquê de empresas serem reconhecidas perante o direito e tudo bem. Ótimo para seus administradores, para os negócios, para o mercado e para a sociedade capitalista.

No texto da gata de Derrida, Victor traz outros valores considerados importantes para o direito, como a liberdade, a consciência, a capacidade de compreender e distinguir o ilícito e lícito. “A quem não tem esse poder de decisão, o direito é mudo.” Será?

Não podemos esperar que animais não humanos compreendam a complexidade da realidade humana e ajam de acordo com nossas regras para considerá-los sujeitos de direitos. Se esse fosse o raciocínio, para crianças o direito também seria mudo. 

A consciência humana é distinta da consciência animal, porém, negar a consciência animal para afirmar uma pretensa superioridade humana soaria presunçoso. Ou como diria Márcia, pernóstico. 

Eis que trago a gata de Montaigne. O texto de Montaigne é considerado um dos primeiros escritos a questionar o antropocentrismo e a superioridade humana em relação às outras espécies. Montaigne dirige críticas à arrogância humana ao estabelecer parâmetros para hierarquizar as espécies com base em faculdades físicas e intelectuais que apenas a espécie humana possui, como a linguagem, por exemplo. “Como conhece ele [o ser humano], por obra da inteligência, os movimentos internos e secretos dos animais? Por qual comparação entre eles e nós conclui sobre a estupidez que lhes atribui? Quando brinco com a minha gata quem sabe se ela não se distrai comigo mais do que eu com ela?” (Montaigne) Adoro essa proposição, genuinamente felina. 

A senciência animal, compreendida como a capacidade do animal de ter consciência, assim como de expressar emoções e desejos, passou a ser relevante no Direito brasileiro com a Declaração de Cambridge sobre a Consciência em Animais Humanos e Não Humanos: “a ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos.”

A defesa de que animais são sujeitos de direitos desperta muita resistência em diversos setores da sociedade, inclusive no direito. Porém, há disputa na compreensão do que seriam propriamente os direitos animais, seus limites e alcances. Gosto do conceito desenvolvido pela filósofa Maria Alice da Silva, amparado na definição de direitos em Hart. Maria Alice afirma que o direito animal deve ser compreendido enquanto direito moral, político e jurídico, reconhecendo-se nessa compreensão a vulnerabilidade e a liberdade como condições para se ter direitos.

Proponho pensarmos os direitos dos animais para além da lógica instrumental do direito, desafiando a cultura patriarcal que hierarquiza indivíduos, espécies e natureza, sob a lógica da dominação masculina. O texto ficou longo e parece que não podemos nos alongar muito por aqui. Por isso, farei uso do precedente (utilidades do direito) criado pelo Victor e trarei a continuidade desse texto em outra parte. 

Não prometo um texto nu, mas pretendo trazer mais uma gata para o balaio e quero continuar a falar sobre essas condições: vulnerabilidade, liberdade e trazer perspectivas ecofeministas animalistas que não couberam nessa parte, amarrar melhor os argumentos feministas que podem nos ajudar a expandir a compreensão dos direitos animais para além dos limites do Direito, esse senhor, sem dúvida, bastante complexado.

Paola Hakenhaar

Mestranda em Direito (UFPR). Professora de Direito Penal (Unisociesc). Advogada Feminista.

Comentários:

  1. Excelente texto. Aguardando a continuação.

    Paula em 27/05/2021
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