Regressemos a 1946 para que, então, possamos voltar à era vitoriana da Inglaterra. Cronologicamente, comecemos pelo livro de Charles Dickens, ‘Grandes Esperanças’ (Great Expectations), lançado em série entre 1860 e 1861. Nele, a história se passa entre 1812 até 1840 e conta a história de Philip Pirip, apelidado cacofonicamente de “Pip”.
Pip é um pobre órfão que, ao visitar os túmulos dos seus pais no cemitério do vilarejo onde vivia, esbarrou com um prisioneiro em fuga e, levado um pouco pelo medo, alimentou o fugitivo quando este quase morria de fome. A polícia captura o meliante e este exime o garoto de qualquer ajuda, fato que Pip nunca esqueceu. Concomitantemente, uma senhora rica e esquisita da cidadela próxima afeiçoa-se ao garoto e o convida frequentemente a brincar na sua mansão, cujo maior impacto é a beleza da esnobe e rude criada Estella.
Passado algum tempo, é concedida a Pip uma fortuna em anonimato, como forma de tutela, para que o rapaz se tornasse um cavalheiro aristocrático sem muitos esforços. E, assim, Pip se debruça no sonho de, uma vez nobre, poder casar com a mulher que ele sempre amou, a pedante Estella.
Agora vamos, enfim, pra 1946 sob as lentes do mestre David Lean na direção do belo GRANDES ESPERANÇAS, baseado, obviamente, no livro supracitado (e com Sir Alec Guinness em seu primeiro papel). Talvez não seja um primor técnico da câmera do excelente diretor, muito menos com o desenvolvimento narrativo bem trabalhado. Pelo contrário, as passagens do tempo e as mudanças de personagens são irregulares, mas a dissecação das camadas sociais não deixou de estar afiada. As perguntas sobre nossa hipocrisia de classe são lançadas a cada cena e, horripilantemente, não sabemos responder. Ou apenas balançamos a cabeça com a face corada.
É preciso estar endinheirado pra ser feliz? Por que o filho do ferreiro que ascendeu financeiramente não é bem visto por quem nunca saiu lá de cima? Qual o impacto da ancestralidade na aceitação? E, por que aquele que subiu agora olha com deboche para os que estão embaixo? Essas indagações são expostas subliminarmente ao espectador atento que busca mais do que uma simples trama de romance/gratidão/vingança. É o espelho da dor e da delícia de ser quem se é, insustentavelmente. Com a função filosófica e cultural esperada do cinema inteligente, que bate, marca, fura e sangra.
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