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Adão dos Açores: Nossa história – ato 10

Adão dos Açores: Nossa história – ato 10
"Mambetuba", aquarela de J.B Debret (1827)

É maio de algum ano do século do XVIII. Algum ano da última década. É noite fria de lua nova. É espessa a escuridão na vila de Itapocorói. Mais espesso é o silêncio. De repente, entretanto, ressoam tambores no fundo da Armação. E salta no céu a fogueira. E ao céu se erguem as vozes dizendo coisas dos Reinos do Congo, Angola e Matamba. Coisas ancestrais que se cantavam à Rainha Jinga nas margens do Rio Cuanza. Coisas recriadas, sob a cruz e os grilhões, nas margens do Rio maior: o mar Oceano, o Atlântico.

Meus avós, pescadores, talvez se aborrecessem: antes da luz do sol eles estariam sobre o mar à cata das baleias. Ou talvez cantassem também, e rezassem, e amassem. Meus avós eram agora todos eles: os pescadores e os escravos, os do rancho e os da senzala, os brancos e os pardos e os negros. Se bem que todos fossem, agora, portugueses. Todos batizados na pia do Padre Antônio Martins da Capela de São João Batista. Todos Josés e Marias, Josés de Benguela, Marias da Guiné, pais de Franciscos crioulos, também estes cativos. Todos os meus avós eram cativos, do rancho ou da senzala. Todos talvez dançassem nessa noite, com tabaco e cachaça, no terreiro do congado.

Todos “indolentes”, diria Saint Hilaire, o botânico. Ele esteve aqui em 1820 e legou seu relato e seus preconceitos. Escreveu que meus avós eram dados “a beber cachaça, a cantar e a tocar viola, até gastarem o ultimo vintém”. É similar ao que disse o Padre Montecúccolo sobre meus avós da África, ressaltando sua “aversão invencível a qualquer trabalho”. Engraçado: meus avós eram as mãos e os pés de seus senhores. Seu suor e seu sangue encheu os baús dos proprietários da Armação. Mas eram “indolentes” aos olhos dolosos dos europeus – também eles, aliás, meus avós.

Na Armação a vida organizava-se mui rigorosamente: no rancho, meus avós pescadores, netos de bandeirantes e açorianos; na senzala, meus avós negros, bens de propriedade do Real Contrato da Pesca da Baleia; na varanda do Casarão, gordos e brancos, os senhores: ricos, riquíssimos.

A Armação do Itapocorói era, no fim de século XVIII, o mais pujante negócio das terras portuguesas entre a Cananeia e a Laguna. Mas a pujança não duraria muito. O sangue e o suor dos meus avós encheram de ouro baús que migraram pra outras terras, pelas mãos de senhores de outros negócios. Restaram apenas, de meus avós, os ossos enterrados no entorno da capela de São João Batista. E os ecos das noites de batuque e fogueira, que ainda soam nos instantes mais profundos deste nosso litoral.

Adão dos Açores

Adão dos Açores é natural da Penha, onde voltou a morar depois de longa ausência. Escreve sobre história e estórias.

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