Terá sido uma festa a passagem do século. Imagino meus avós morando na Ilha de São Francisco ou vivendo vidas miseráveis nas ruínas de alguma taba carijó: Itapetinga, Itaperiú, Itapocorói, Acangapaba, Camboriú, Perequê – ruínas das aldeias devastadas pelos bandeirantes. Não, meus avós não choravam por isso: também eles, eu já disse, eram agora portugueses como os bandeirantes, apesar do sangue carijó que eles, os bandeirantes e todos por aqui talvez tivessem. Não, ninguém chorava – todos festejavam: o ano 1700 se iniciava, o novo horizonte se abria.
Não havia, é verdade, razão pra tanta festa. A miséria talvez poupasse apenas os poucos homens da Coroa e da Igreja, além dos senhores donos dos engenhos: a farinha da mandioca era fonte de que gotejava, pequena, quase toda a riqueza gerada em Santa Catarina. Salvo por esses homens, eram os demais miseráveis. Entre estes, sem dúvida, estavam meus avós.
Na quarta década do século, entretanto, vieram os homens dos Açores. Meus outros avós, nativos de ilhas d’além do Equador. Homens destemidos: caçavam as baleias em suas canoas de canela, armados de uivos e arpões. Homens numerosos: Oswaldo Furlan escreveu que “entre 1748 e 1756, aos aproximadamente quatro mil habitantes de SC se acresceram aproximadamente seis mil açorianos”. Seis mil homens tentando sobreviver bem ao sul de sua terra natal. Meus outros avós, homens dos Açores, eram destemidos e numerosos. Mas miseráveis como todos os meus avós.
Houve porém quem organizasse a caça da baleia. Quem recebesse da Caroa a concessão da empreitada. Eram outros senhores, como aqueles donos dos engenhos. Eram todos esses senhores muito poucos. Pouquíssimos. Entre estes, sem dúvida, não estavam meus avós. Não, meus avós não eram donos de nada: eles giravam a roda do engenho ou remavam as canoas de canela armados de arpões e de uivos – e enriqueciam seus senhores, donos de tudo.
Mas assim, miseráveis e destemidos e numerosos, meus avós povoaram esta terra. E então esta terra já tinha algumas das vilas que hoje tem – e algo da gente que hoje somos.
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