Clube da Moldávia faz sua estreia na Champions League construindo uma das histórias mais surpreendentes desta edição. Vitória também revive discussão sobre território separatista.
A Champions League é o palco onde se apresentam os grandes craques e os times galácticos, mas também histórias incríveis. Até o início da temporada europeia pouquíssimos conheciam, ou tinham ouvido falar do Sheriff Tiraspol, mesmo ele sendo o maior campeão do pouco prestigiado futebol moldavo. Sem nenhum destaque no cenário europeu, o clube se classificou pela primeira vez na história para uma fase de grupos da Champions League e leva suas histórias para a maior competição de clubes do mundo.
Carregando uma estrela típica dos xerifes americanos no emblema, o Sheriff entrou como franco-atirador em um grupo com Real Madrid (Espanha), Internazionale de Milão (Itália) e Shakhtar Donetsk (Ucrânia). Com recursos e estrutura incomparável aos outros 3 clubes, o time moldavo fez história já na estreia, quando bateu o Shakhtar por 2 a 0 em casa. Na segunda rodada uma missão quase impossível: enfrentar o Real Madrid no Santiago Bernabéu diante de 24 mil merengues. Certeiro, o Sheriff precisou de 3 chutes no gol para vencer o Real por 2 a 1, com direito a golaço no finalzinho.
Para efeito de comparação, o Sheriff tem o menor valor de mercado não só no grupo, mas entre os 32 clubes europeus que disputam a Champions League 2020/21. Um elenco que vale pouco mais de 12 milhões de euros, venceu um Shakhtar que vale €184 milhões e um Real Madrid com valor de mercado de €793.5 milhões. Mas para o futebol, dinheiro não é o mais importante. Não dá pra dizer que o estreante bateu de frente com o tradicionalíssimo Real Madrid (na verdade, foi um sufoco), no entanto o que conta neste esporte é a bola na rede, e nesse quesito o xerife foi o vencedor incontestável.
Vitória coloca Transnístria no mapa
Além dos 6 pontos na tabela, o Sheriff ganhou destaque internacional. Jornais do mundo todo repercutiram os bons resultados do time debutante, mas também abriram espaço para uma discussão mais profunda, que ultrapassa as quatro linhas. Isso porque o clube moldavo está envolvido em uma questão geopolítica.
A equipe representa a Moldávia na Champions League, país do leste europeu e antiga república soviética, mas na realidade ninguém ali se identifica como moldavo. O Sheriff joga em Tiraspol, a segunda maior cidade da Moldávia, considerada também a capital da Transnístria: uma uma autoproclamada república socialista e independente. Conhecida por vários nomes (como Transdniéstria, Transdniestre ou ‘oficialmente’ República Moldávia Pridnestroviana) a história da região sempre esteve ligada à Ucrânia, país vizinho. Após a guerra da Transnístria em 1992, a Moldávia aceitou a criação (mas não a independência) da região autônoma.
Com governo próprio, bandeira, hino, exército e até moeda, o território que abriga meio milhão de pessoas em 4.100km² não é reconhecido como um país pela ONU. Com influências ucraniano-russa, vários símbolos apontam para a ex-União Soviética, das imagens de Lenin e Stalin à foice e o martelo presente na bandeira.
Relação com a KGB
A fundação do clube ‘transnístrio’ tem relação direta com a guerra separatista dos anos 90. Conflitos armados entre moldavos e transnístrios (apoiados pelo exército russo) perpetuaram até 1992, deixando aproximadamente 2000 mortos. Após o fim da guerra, Viktor Gushan e Ilya Kazmaly, dois ex-agentes do serviço secreto soviético (KGB), fundaram a Sheriff. A empresa que atua em diversas áreas, que vão desde postos de gasolina à emissora de TV, se tornou verdadeiramente dominante no mercado da Transnístria. Para aumentar a influência na região e entre os países vizinhos, nada melhor do que fazer isso por meio do esporte mais popular do mundo.
Em 1997 nasceria o Sheriff Tiraspol, levando o nome da empresa e também da capital da região separatista. Apesar de ser transnístrio, o clube decidiu ultrapassar as barreiras geopolíticas e jogar no futebol moldavo (com uma liga já formada e parte da UEFA). Na Divizia Naţională, principal divisão do futebol na Moldávia, se tornou absoluto: venceu 19 dos últimos 21 campeonatos nacionais.
Em um torneio pouco competitivo e com recorrentes acusações de manipulação de resultados, mesmo os campeões não se classificavam diretamente para a Champions League. Tendo que passar por diversas fases preliminares contra equipes mais fortes. Neste ano, o Sheriff conseguiu algo inédito: se classificou para a fase de grupos eliminando times como Teuta (Albânia) Alashkert (Armênia) Estrela Vermelha (Sérvia) e Dinamo Zagreb (Croácia).
O brasileiro que limpava navios
O futebol do leste europeu carrega várias histórias de jogadores que tentam o estrelato por meio de mercados mais alternativos do continente, longe de seu país de origem e de qualquer holofote. No Sheriff, do ultra alternativo futebol moldavo, um personagem se destaca pela curiosa história de vida: o brasileiro Cristiano da Silva Leite. Atuando pela lateral esquerda, ele se tornou o líder de assistências de toda a Champions após o fim da segunda rodada, com 3 passes para gol.
Mas dez anos antes da estreia impressionante na Champions League, Cristiano vivia uma situação bem diferente ainda do lado de cá do Oceano Atlântico:
“Em 2011, eu parei de jogar futebol e fui trabalhar. Trabalhei em um estaleiro no Rio, em duas empresas com carteira assinada para ajudar a minha mãe, na época desempregada. Eu trabalhei com pintura, limpeza de tanque e limpeza de submarino com óleo”
Cristiano em entrevista ao Non Sense Football
Após diversos testes sem sucessos em grandes clubes, Cristiano se viu obrigado a abandonar temporariamente a carreira para limpar navios no Rio de Janeiro, aos 18 anos. Dois anos depois, recebeu uma segunda chance do futebol e foi jogar pelo Vitória das Tabocas, na segunda divisão do Campeonato Pernambucano. De lá pra cá se consolidou na lateral do Volta Redonda, até receber em 2017 a proposta de um clube desconhecido do futebol moldavo: o Sheriff Tiraspol.
Próximos passos
O início avassalador do Sheriff Tiraspol na Champions League deixa as expectativas lá no alto para o restante da fase de grupos. Na próxima rodada o clube enfrenta a Internazionale de Milão, que fez apenas um ponto nos dois primeiros jogos. Há quatro partidas de uma eventual classificação para o mata-mata do torneio, os espectadores assistem a história do futebol alternativo diante dos olhos. Em esporte cada vez mais dominado pelos mesmo nomes e disposto a fortalecer grupos restritos, o sucesso de um ‘desconhecido’ (por mais que inserido em uma dinastia própria no futebol moldavo) se torna uma das narrativas mais interessantes da temporada.
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