Quando amanheceu e o céu estava claro, já passava das sete horas, eu me levantei. Há rugas, olhos vermelhos e um vazio meio estranho no peito, disse meu espelho assim, sem mais. Faz frionesses dias que me lembram os pacientes do hospital, que usavam chinelos velhos e os pés eram machucados, cansados, doídos de frio e de vida. As freiras que circulavam por lá detinham o poder do conforto, antes fosse das almas dos alienados, mas sim do corpo mesmo, através de chaves de armários, onde guardavam calçados quentes, casacos gostosos, calças compridas, camisetas cheirosase toucas macias, que eram liberados apenas na quinta-feira, dia de visita e depois confiscados assim que os estrangeiros partiam de “alma lavada”daquele lugar. Sempre me vem na cabeça a imagem daqueles pés gelados quando os meus estão frios, junto com o olhar caridoso da senhora de hábito engomado, cabelinhos brancos, um crucifixo de madeira pendurado no peito e o tintilar das chaves em algum bolso daquela fantasia.
O céu já estava claro e saí do banheiro como testemunha de que nem tudo são flores, amor e paz nos conventos e nos hospícios. Talvez haja alguma semelhança entre os dois nas técnicas de controle social. Fracassaram, a gente sabe disso. O hospital fechou, abriu outro, sem freiras.
Fiz um café e brindei, discretamente e em segredo, o fim daquele lugar. Senti um leve aconchego no peito por este gesto de vingança pois sim, eu era jovem e queria a revolução, eu queria quebrar com eles aquelas portas, derrubar aqueles armários junto aos gritos, músicas e danças, eu queria a derrubada do sistema, eu queria a euforia do caos, despir a fantasia daquelas senhoras que um dia rezaram enquanto os médicos aplicavam choques até convulsionar os homens e mulheres dos pés machucados. Rezavam e só, pediam a deus que tirassem a possessão demoníaca daquelas pessoas pelas correntes elétricas dos médicos. E os médicos, talvez outro dia eu falo, pois era uma época de restos, restos de hábitos, restos de técnicas, restos de torturas, restos de selvagerias. Hoje não. Hoje é diferente.
Pão com manteiga e mordi tenso. Era um dia frio, mas acordei quando já estava claro, o que foi uma exceção. Geralmente acordo com o dia e o espelho ainda em sonos profundos. No inverno uso meias, mas estava frio e lembro sempre dos pés dos loucos e eu tento acreditar que hoje não mais.
Acho que ainda quero a revolução, eu penso, me sentindo jovem, engolindo opão, a manteiga e o último gole de café.
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