Arte

Cecília Cortez: Yakisoba

Cecília Cortez: Yakisoba

Um pimentão verde, um amarelo, um bem vermelho. Brócolis, couve-flor, cenoura fininha e quiabo. Antes a carne, o lombinho de porco, o peito branquinho de frango, a linguicinha picante, tudo frito na própria gordura. Da panela já se solta, meu Deus, o cheiro da janta. Reabasteço minha taça com um malbec de Mendoza. Dou um gole longo. E engulo os últimos tristes pensamentos da tarde.

Ouço o Jornal Nacional na TV. Bonner e sua voz macia como o lombinho do porco. Não resisto e dou uma espiada na tela. É sempre impecável o brilho sóbrio de sua pele túrgida. Túrgida? Que palavra fui escolher! A pele dele é fina e delicada como a do pimentão vermelho que remexo com a pontinha da colher. Bonner é lindo. Eu o imagino aqui ao meu lado. Ele veste uma camisa branca de gola aberta. Uma calça branca confortável. Está descalço. Segura uma taça idêntica à minha e faz um gesto encenando um leve delírio com os cheiros que sente: o da janta, o do vinho, o meu. Então se aproxima por trás e sussurra aos meus ouvidos:

– O Presidente Jair Bolsonaro…

Ah, maldito Jornal Nacional! Que coisa broxante! Bonner acaba de anunciar mais uma notícia chata sobre política. Agora é a voz do Presidente que se ouve. Ela é irregular, estridente, cheia de pontas. A dicção é péssima. As palavras se embolam. São palavras ásperas. Grosseiras. Vulgares. É tão insegura a voz do Presidente. Lembra a do meu ex-marido. Lembra a que ele usava quando desfiava teses diante dos amigos. Ele, os amigos, as teses, todos bêbados. O Presidente fala como se esmurrasse a mesa do bar. Quer os aplausos de homens como ele. Homens como meu ex-marido. Quase posso sentir sua respiração ofegante. Sua palpitação. Seu mau hálito.

– Nosso casamento não existe mais – disse meu ex-marido, com mau hálito, no último dia de nosso casamento.

Ele estava certo. E sóbrio. E tinha olheiras e a pele amarela, como o Presidente. Bonner é tão diferente. A gravata azul impecável. A mecha grisalha. A pele fina e de um rubor sutil como o do lombinho do porco. Meu deus, quase queimo os pimentões! Não, não queimaram, a janta parece quase pronta. Mais uns minutos. Mais uma taça.

– Boa noite!

Mando um beijo pro Bonner e rio de mim mesma. Que loucura! O vinho, o Bonner, o yakisoba, tudo girando ao meu redor como realidade e imaginação misturadas. Eu misturo as coisas na panela. Concentro meus olhos nos pimentões, no lombinho, no quiabo. Faço tudo girar num redemoinho. Parece que vejo faces nos picados. Sim, faces. Bonner num suculento pedaço de lombinho. O Presidente num pimentão amarelo. Meu ex-marido num quiabo. Todos girando num redemoinho. Eu rio de mim mesma. Que loucura!

– Tá pronto!

O cheiro é ótimo. Mistura-se com o do vinho. Pimentões e carvalho. Lombinhos e malbec. Sirvo um prato do meu jogo mais antigo de porcelana alemã. E mais uma taça. Sento-me em frente à TV. A novela começa com uma cena picante. Com a pontinha do garfo cato os pedaços róseos de lombinho. E faminta os devoro.

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