Opinião

Funknejo

Funknejo

Neste verão decidi ser passiva. Completamente passiva. Fui aonde eles quiseram. Comi e bebi o que propuseram. Ouvi o que programaram em seus Spotifys. Foda-se, pensei. Exatamente essa palavra soou em minha mente quando ouvi os primeiros acordes de sanfona saindo da JBL: foda-se! Afinal, é verão, são férias e somos um grupo de amigos na praia.

Foder é um verbo apelativo. Lamento ter que usá-lo. Mas não me resta alternativa: este texto seria impossível sem ele. Eu ouvi funk e sertanejo durante dias. Este texto é sobre essa música. E essa música insiste em conjugar esse verbo. Em todos os modos e tempos. Na primeira, na segunda e na terceira pessoa, do singular e do plural.

Tocava um funk quando comecei a reparar nas letras. A moça dizia no refrão que era gostoso dar de quatro. Achei legal. Picante, ousado, libertário. Parecia ecoar a Justine do Sade. Veio outro funk: o moço dizia no refrão que era gostoso foder uma cachorra de quatro. Achei repetitivo, mas ainda apreciei. Aí tocou mais um: a moça dizia que era bom foder no banco de trás de carro. Então me aborreci. Os funks pareciam obrigados a abordar esse tema único: a foda.

A obrigação de ser monotemático é exatamente o que notei nas músicas sertanejas que logo começaram a tocar. Na primeira um moço contava que viu sua amada aceitar o anel de noivado dum outro alguém. Achei de um lirismo sincero embora clichê. Na segunda o moço dizia que tava num baile e de repente sua amada sumiu; quando reapareceu, ela tinha a maquiagem borrada e ele concluiu que ela saíra “pra transar”. Achei desnecessário explicitar a conclusão. Então veio a terceira música: o moço estava no motel e ouviu os gemidos de sua “ex” vindo do quarto ao lado – e com isso, compreensivelmente, não conseguiu “aproveitar” os “duzentos reais” que pagara à sua acompanhante.

Fui dar um mergulho depois de ouvir meia hora do repertório da JBL. Pensei: “não é assim um Tom Jobim, é verdade; mas tô feliz por ouvir o que o povo ouve”. Voltei do mar feliz pro meio do povo. O problema é que passei duas semanas com ele. Duas semanas ouvindo funknejo.

Povo é um substantivo apelativo. Não era “o povo” que ouvia essas músicas. Era o meu grupo reunido na praia em torno da JBL. E o grupo reunido em torno da JBL ao lado. E o outro. E o outro. E a FM sintonizada no carro. E a outra. E quase todas. Enfim, não era o povo todo; mas era muita gente. Todos ouvindo sempre funk e sertanejo. Um e outro sempre, ou quase sempre, monotemáticos.

Este foi o problema: nessas duas semanas os dois temas se repetiram incessantemente. Eu gosto de funk, de James Brown a Anitta. Gosto de sertanejo, de Renato Teixeira a Marília Mendonça. Mas as JBLs só tocaram funks falando em foder e sertanejos falando da amada (ou do amado) fodendo com outro (ou outra). Cada música tentando ser mais realista, ou mais explícita, ou apenas capaz de descrever uma foda ou uma traição que nenhum outro funk ou sertanejo descreveu.

Foda e traição: os dois temas da música desse povo. Porque não é “todo o povo”. É só “esse povo”. Se bem que é muita gente. Todos ouvindo “esse” funknejo. Todos oscilando entre esses dois extremos: o prazer de foder e a dor de saber que a amada, ou o amado, fode com outro, ou outra. Isso é tão típico! Quem só pensa em foder é sempre atormentado pelo medo de ser traído. Tende a achar que sua amada, ou amado, pensa igual a ele – e então é igualmente propensa, ou propenso, a trair. O desejo extremado cria o medo pervasivo. Sidarta Gautama, se não me engano, disse algo nesse sentido.

Essa música, portanto, reflete esses dois valores cardinais: foder e se foder. Os valores desse povo. Eles querem foder com tudo: gays, índios, amazônia, comunistas, professores, feministas, mata atlântica, patrimônio histórico, bolsa família, universidades públicas, pantanal, cerrado, caatinga, tudo. Eles querem especialmente foder o povo, aquele outro povo pobre e faminto, que eles chamam de vagabundo. Eles querem foder o país. Foder até esfolar. E então ir embora pra Miami. Mas esse desejo cria o medo. Eles temem sempre, desesperadamente, serem fodidos. Acham que todos os políticos são ladrões. Todas as vacinas, venenos. Todos os pobres, bandidos. Todo brasileiro, concluem, é um pilantra. Todo mundo só quer fodê-los, com ênclise e tudo.

Esse povo vive atormentado entre esses dois extremos de sua existência. Não admira que sua música reflita isso. Seu funk só fala em foder. Seu sertanejo só fala em se foder. E isso, “esse” funknejo, toca em tantas das milhões de JBLs espalhando bilhões de decibéis por nosso território. Não sei, mas acho que paira no ar algo que me soa como uma mensagem: estamos fodidos.

Comentários:

  1. Excelente texto e com uma reflexão necessária sobre a “nossa cultura”. O Brasil está traído e fodido, principalmente no consciente coletivo das massas. Pra não dizer dos gados.

    Danilo Otoni em 21/01/2022
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