Opinião

Meninos mimados

Meninos mimados

Somos meninos mimados. Nós, ocidentais, de bermuda e chinelas pelas ruas de Doha, Catar: mimados. Foi o que concluí ao pensar sobre o islã. Tratamos Deus como um pai infinitamente obrigado a atender nossos caprichos – e eventualmente incapaz de suprir nossos excessos pródigos. Os mulçumanos não são assim: o primeiro princípio do islã é a submissão. Nada exigem a Deus. A Ele têm só gratidão: a vida, a consciência da divindade da vida – isso é o bem absoluto. Deus não lhes deve nada.

Pascal escreveu belas linhas justificando essa submissão. Deus é o senhor do universo. O homem é um ser irrisório. Aquele é infinitamente sábio e poderoso. Este, infinitamente débil. Como ninguém mais, Pascal foi capaz de compreender infinitos. Não surpreende que tenha submetido tão completamente sua razão à sua fé.

Os mulçumanos também a submetem. Não há entre eles a tal “crise filosófica da modernidade”. Eles não se preocupam com o fato de que a razão, que tudo compreende, não possa compreender a si mesma. Eles jamais se perguntam, como Hegel, o que é o sujeito diante do olhar solitário do próprio sujeito. Esse olhar é uma folha ao vento: eles compreendem isso com uma simplicidade luminosa. Então fecham os olhos e se curvam em direção a Meca.

Enquanto isso nós, ocidentais, de bermuda e chinelas, erramos pelas ruas de Doha em busca dum Deus submisso à nossa razão. Ou em busca dum instante de alívio. Ou em busca duma cerveja, caralho, em algum canto da cidade. Não, não é a cerveja: queremos mudar as coisas, reunir o povo, fazer a revolução – ver os pobres invadindo os palácios, as mulheres rasgando os véus, a festa ao redor das fogueiras que queimam as leis humanas. Somos livres – ou loucos – o bastante pra não nos submetermos a nada.

Eles, os mulçumanos, talvez não sejam: eis a questão. A submissão a Deus é a submissão à lei. A lei é a ordem. A ordem é a realidade: a riqueza dos emires, a miséria dos povos, o silêncio das mulheres. Nós não aceitamos: queremos contestar essa realidade, abalar seus fundamentos, construir um futuro sobre seus escombros. Somos livres – ou loucos – o bastante pra isso.

Ou somos apenas mimados.

Werner Schön

Werner Schön tenta fazer literatura. Em Jaraguá do Sul.

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