Derek Chauvin manteve-se ajoelhado sobre o pescoço de George Floyd durante 9 minutos de 29 segundos. George disse: “eu não consigo respirar”. George depois se calou. George morreu. Tudo isso sob o joelho branco de Chauvin. Tudo isso sob a empáfia branca da polícia.
A polícia americana é racista. Negros têm até três vezes mais chances de serem mortos por policiais do que brancos. Este é um dado estarrecedor. Mas é apenas mais um: a literatura criminológica abordando o tema é impactante (confira aqui, aqui e aqui algumas sugestões; mas não leia se não tiver estômago). A polícia americana é racista porque a sociedade americana desenvolveu discursos racistas supostamente legítimos. Você acha que Derek Chauvin está sozinho no banco dos réus? Saiba: não está. Você acha que o crime por ele cometido é indefensável? Saiba: muitos o defendem. Você não suporta ver todos os 9 minutos e 29 segundos do vídeo? Saiba: há quem encontre nisso um mórbido prazer.
O racismo americano está baseado sobretudo no supremacismo. E este, numa premissa aparentemente simples: raças (humanas) existem. Porque existem, têm o direito – eis o ponto – de preservar sua existência. Daí ao argumento de que brancos podem não querer se misturar com outras raças, é um pulo. Mais um pulo e haverá idiotas defendendo escolas apenas para crianças brancas, clubes apenas para frequentadores brancos, e outras vilezas. Esse tipo de discurso lhe parece repugnante? Sim, ele é. Mas existe. E existe como um discurso formalmente legítimo: você pode não concordar com ele, mas tem que tolerá-lo. Assim é nos EUA. Assim, mais sutilmente, é aqui.
Você já notou aonde esse discurso vai chegar. Sigamos seu raciocínio. Se existem raças, existem diferenças entre elas. Se existem tais diferenças, existem raças melhores e piores – superiores e inferiores. Brancos são superiores: construíram a civilização. Negros são inferiores: foram incorporados à civilização dos brancos como mão-de-obra escrava. E então, num golpe seco, a conclusão fatal: negros são mais propensos a serem pobres e marginais e criminosos e etc – simplesmente porque são negros.
Chauvin não está sozinho. Não se engane: são muitos os supremacistas. São poderosos. E, se você não os notou, talvez não tenha reparado bem: às vezes há um copo de leite sobre a mesa; às vezes, dois dedinhos na lapela. Tenho lido textos supremacistas americanos; faço isso como um exercício de vigilância: vejo neles a fonte de narrativas que, aqui inclusive, têm causado muito mal. Os supremacistas escreveram muito sobre o caso (e também, como é típico, apagaram muito do que escreveram). Floyd, segundo eles, era um drogado, um bandido, uma ameaça; Chauvin, um policial tentando defender a sociedade. A sociedade branca, claro. Se há várias raças, por que não várias sociedades?
Mas Chauvin está preso. Preso e condenado. O júri proclamou: o policial branco assassinou o homem negro. Chauvin é um assassino. Quem disse isso foi a justiça de todos os americanos – brancos ou não. Mais ainda: isso tem sido proclamado com crescente intensidade pela sociedade americana. Pois existe, sim, uma tal sociedade – composta de brancos, negros, latinos, asiáticos, mestiços. Uma que abrange o grande povo dessa grande nação.
George Floyd, sua morte, o julgamento de seu assassino – tudo isso representa um marco na história da nação americana. O racismo supremacista não acabou. Mas foi duramente golpeado pelas instituições democráticas. Essas instituições muitas vezes parecem conspurcadas por quem agora golpeiam. Mas a democracia é assim: ela se aprimora processando a história do povo. Essa história é feita de luta. A luta é movida por esperança. George tornou-se um símbolo disso: luta e esperança. É um notável legado.
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