Opinião

Mapa de calor

Mapa de calor

Figurem a cena: sábado, dez da manhã, dois caras jogam bola numa bela e pacata praia do litoral catarinense. Personagens: um menino de dez anos e um homem de mais quarenta. Cenário: os poucos metros quadrados de areia dura entre as traves feitas com gravetos. Enredo: um enfrenta o outro num jogo duro, disputado palmo a palmo, com dribles curtos e chutes rasteiros. Clímax: o zero a zero insiste em permanecer no placar, os jogadores dão sinais de cansaço, a vitória depende só de um gol, a derrota vem como morte súbita.

O jogo acaba e ambos vão tomar um banho de mar. O pequeno campo fica vazio. Restam apenas as pegadas na areia. Então percebo: elas, as pegadas, são um retrato do jogo. Um retrato, não: um mapa. Revelam a geografia do confronto. Os espaços mais disputados. As trincheiras de cada um dos rivais. Os pontos de fuga e contra-ataques. Os fluxos. É o que a imprensa ‘especializada’ chama de ‘mapa de calor’. De fato: o pequeno campo ainda exalava o calor da disputa.

Domingo, uma da tarde, acabava a partida entre Flamengo e Botafogo. Passadas as entrevistas, apareceu na tevê o famigerado mapa de calor. Adivinhem: o campo de ataque do Flamengo estava todo pintado com amarelos e vermelhos abrasantes; o do Botafogo, com verdes e azuis gelados. O jogo aconteceu perto do gol alvinegro. Durante a maior parte do tempo o Flamengo atacou o rival entrincheirado. Mesmo assim o alvinegro teve tantas chances de gol quantas teve o adversário. Numa delas, marcou. Placar final: um a zero.

O mapa de calor mostra as assimetrias do Flamengo. Há muita movimentação pela esquerda do ataque. Há pouca pela direita. O Flamengo é uma figura geométrica torta, com Bruno Henrique num vértice e o Isla no outro. O ataque é enviesado, como o de um lutador que usasse um braço só. A defesa é irregular, as linhas não se definem, os espaços não se preenchem. Os golpes do Flamengo são previsíveis. Os vacilos também.

Mas pior é aquilo que o mapa de calor não mostra. A insegurança do Andreas. A falta de foco do Arão. A falta de pontaria do Davi Luiz. O mapa não mostra o calor incendiário que vem de fora do campo. Não mostra o mal estar dos jogadores em meio a todo esse inferno. Não mostra o frio – cheio de mágoa ou de raiva (ou de ambas) – no peito de cada um deles.

Volto à cena inicial. Assim como o Flamengo, o menino atacou mais: as pegadas na areia mostravam que o jogo se concentrou na região próxima ao gol de seu adversário. Assim como o Flamengo, o menino perdeu a partida num implacável contra-ataque. Mas as comparações param por aqui. O menino fez um grande jogo. Naqueles poucos metros de praia ele deixou tudo o que podia entregar. Todo o calor possível. Um calor que não pode ser mapeado e que existe, invisível mas evidente, na alma de cada jogador. Ou melhor: de cada homem.

Comentários:

Ao enviar esse comentário você concorda com nossa Política de Privacidade.