
Vou revelar um segredo: sou o advogado da Abertura. Quando o Teco me contratou, resumiu assim meus serviços:
– Preciso dum bom estatuto e de advocacia preventiva.
Teco é um homem prevenido. Ortodoxo, eu diria. Mas apenas nos negócios. Na direção artística da Abertura ele é completamente heterodoxo. Tem cada ideia que custa a crer.
A última do Teco: escrever uma mensagem de natal. Uma mensagem institucional, estatutária, ceenepejótica: algo como aquela musiquinha da Globo cantada em coro. A ideia é até bem prosaica. O detalhe heterodoxo é o seguinte: ele pediu que eu escrevesse.
– Eu, Teco? Por quê?
– Você é o mais convencional. Wagner escreveria um poema inquieto. Karlan faria uma análise densa. Darwinn iria denunciar o impulso consumista da sociedade pós-industrial. Quero um texto pra ser lido na hora de fatiar o peru, pô!
O Teco não me convenceu. Eu sabia que tinha algo por trás daquela ideia. É verdade que sou bastante convencional. Mas a Abertura tem vários colaboradores que, sabendo sê-lo, escreveriam mensagens bem melhores.
– E a Cecília?
– Cecília é um pouco exagerada. Pode usar palavras impróprias. Lembre-se: a mensagem é da firma.
Eu retruquei em defesa de nossa escritora:
– Cecília tem um estilo bem delicado.
– Mas ela não é advogada. Vai que, falando a todos os colaboradores, ela exalte o “trabalho” deles ou mencione suas longas e noturnas “jornadas”. Já pensou no passivo trabalhista que pode criar? Sem contar o que ela pode dizer ao público, fazendo promessas de um ano novo repleto de felicidade e tal. Isso não fere o código do consumidor? E nem vou falar dos efeitos tributários…
Teco é um homem pragmático. Compreendi seu ponto: já que a mensagem é da Abertura, ela tem que ser prevenida. Quase uma peça jurídica. Portanto sou eu, o advogado, quem deve escrevê-la. Entendi a decisão. Mas apelei:
– Eu não sei falar de natal!
– Você é um jaraguaense de sobrenome alemão. Tem cristianismo no sangue.
– Teco, comecei a ler Nietzsche com quinze anos!
– E com quarenta começou a entender o evangelho de João.
Teco golpeou meu ponto fraco. João é demais. Recitei de cor o famoso versículo:
– O Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória…
– Não, não – interrompeu o Teco – nada de textos bíblicos na mensagem! Vai que alguém se incomode. Isso pode gerar danos morais!
– Mas Teco…
– Definitivamente não. A mensagem é da firma!
Eu cedi. Sentei-me ao teclado e gastei horas produzindo um texto enxuto e cuidadoso. Revisei e rerrevisei. Afinal ficou assim:
“A Abertura, por suas instâncias estatutárias, cumprimenta seus colaboradores, digníssimos prestadores de serviço voluntário e gratuito insujeitos à tutela celetista, e seu estimado público, ressalvando qualquer tipo de interpretação não autorizada desta mensagem que lhe possa eventualmente causar imateriais danos, em razão da data natalina, definida pela cristandade como a do nascimento do Jesus histórico e por isso, sem desconsiderar eventuais discordâncias, por nós celebrada, desejando a todos a mais vasta e fecunda felicidade, mas sem com isso prometê-la, dado que não a fornecemos e nem a produzimos, e portanto não temos a obrigação de assegurá-la segundo a estrita dicção da lei consumerista, valendo ainda ressaltar, outrossim, que esta mensagem, enquanto enunciado linguístico, é inelutavelmente sujeita a variações significantes e significativas (cf. o segundo Wittgenstein), de tal forma que eventuais danos dela originados, ainda que com inequívoco nexo causal, terão sido fortuitos e insuscetíveis de indenização.”
– O que achou, Teco?
– Tem muita vírgula.
– Entendo. Falta fluidez, né?
– Precisava mesmo citar o segundo Wittgenstein?
– Não. Pode apagar a referência.
– Ainda assim o texto ficará um pouco árido – sentenciou o Teco, irrecorrível. – Faltou sentimento.
Gostei de ouvir isso. O Teco às vezes parece muito racional. Mas então a gente compreende que ali bate um coração.
– Por que não fala com a Cecília? – eu insisti.
– Vou pensar. Talvez eu tente o Darwinn. Ele é advogado, né?
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