No 27 de maio último a Confederação Nacional dos Dirigentes Lojistas (CNDL) promoveu a 15ª edição da campanha “O Dia Livre de Impostos”, com o objetivo de, conforme inserido no site da entidade, “conscientizar a população e o varejo sobre a alta carga tributária paga no país e o baixo retorno desse investimento em serviços e equipamentos públicos”.
Nesse dia, os lojistas que aderiram à iniciativa comercializaram produtos sem repassar o valor da tributação ao consumidor. Os preços das mercadorias e serviços sofreram, consequentemente, consideráveis descontos. Não porque, como defendido pela CNDL, a carga tributária, no Brasil, seja alta – afirmações do tipo exigem específica e concreta comparação, não efetuada pela entidade -, mas em razão de a tributação brasileira incidir em demasia sobre o consumo.
Em 2018, a carga tributária brasileira bruta equivaleu a 33,1% do PIB, inferior à média dos países que fazem parte da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, que foi de R$ 34,3% no mesmo ano. Em 2017, a situação foi semelhante: a carga tributária brasileira bruta naquele ano foi de 32,33% do PIB, e a dos países que integram a OCDE foi, na média, superior, tendo importado em 34,19%.
É a tributação centrada no consumo de bens e serviços – e não “a alta carga tributária brasileira”, como afirmado, de forma pouco detalhada, pela entidade nacional de representação dos lojistas -, a maior injustiça do sistema tributário nacional.
Sob esse regime tributário focado no consumo, exige-se contribuição por igual das pessoas, independentemente da capacidade financeira de cada um: é certo que o pobre e o rico, quando adquirem a mesma mercadoria, pagam valor idêntico de ICMS, que é uma parcela do preço da mercadoria.
A Receita Federal do Brasil realizou estudo em 2020 que indica que aproximadamente a metade de toda a arrecadação tributária nacional – aí incluídos tributos recolhidos em favor da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios – decorreu do recolhimento de tributos que incidiram sobre a produção e a comercialização de bens e a prestação de serviços, isto é, sobre o consumo.
Em outras palavras: o conjunto de consumidores finais brasileiros – a abranger também os milhões de baixa renda – contribui com quase a metade dos recursos obtidos pelo poder público por meio da cobrança de tributos. Tal esclarecimento faltou na campanha deflagrada, anualmente, pela CNDL, mas não só.
Ainda que, como mencionado, a carga tributária brasileira bruta seja inferior à dos países membros da OCDE, não é pouco, reconhece-se, o que se paga a título de tributos em nosso país. Por isso que é frequente – e sempre pertinente – o seguinte questionamento: os valores recolhidos a título de tributos no Brasil convertem-se em benefícios à população brasileira?
Para a CNDL, repete-se em parte a transcrição: há um “baixo retorno desse investimento em serviços e equipamentos públicos”. Também quanto ao ponto uma informação mais concreta mereceria ter sido prestada à população por meio da campanha qualificada como de conscientização.
A fim de responder à pergunta acima formulada tem-se como elementar a análise da denominada carga tributária líquida – não mencionada, pela CNDL, em sua campanha. A omitida carga tributária líquida vem a ser o resultado da diferença entre a carga tributária bruta e o que retorna aos cidadãos por meio de mecanismos estatais de transferência de renda (aposentadorias, pensões e benefícios assistenciais).
Sob esse ângulo de análise, a carga tributária brasileira é significativamente menor do que costumamos ler e ouvir, tendo equivalido, em 2017, a 14,4% do PIB, inferior à metade da carga tributária brasileira bruta (32,33%, no mesmo ano).
A manutenção, por meio do recolhimento de tributos, da ampla rede de proteção social instituída com a Constituição Federal, da qual faz parte o Sistema Único de Saúde – SUS, sem similar mundo afora e que beneficia a maior parte dos milhões de brasileiros, igualmente não poderia, em favor da verdade, ter sido negligenciada.
Em artigo de 2019 publicado na Folha de São Paulo, intitulado “Sem o SUS, é a barbárie”, o médico Drauzio Varella resumiu a situação vivenciada no período anterior à instituição do Sistema Único de Saúde: “Talvez você não saiba que, naquela época, só os brasileiros com carteira assinada tinham direito à assistência médica, pelo antigo INPS. (…) As crianças não tinham acesso a pediatras e recebiam uma ou outra vacina em campanhas bissextas organizadas nos centros urbanos, de preferência em períodos eleitorais”.
Poucos hoje ousam reivindicar o retorno àquele modelo de saúde pública pouco inclusivo. Ressalvados habitantes de universos paralelos, não é possível negar atualmente a importância de instituições públicas como o Butantan e a Fundação Oswaldo Cruz e, em especial, do Sistema Único de Saúde, mantidos, em boa medida, por meio do recolhimento de tributos.
Embora os discursos liberais não apontem nessa direção, não são só os que dependem do SUS, do INSS e de programas assistenciais que são favorecidos pelo pagamento de tributos. Os direitos individuais clássicos igualmente demandam o dispêndio de recursos públicos.
Stephen Holmes e Cass R. Sunstein, reconhecidos juristas norte-americanos, bem lembram que também a propriedade privada depende de atuação estatal. Na falta do Estado para prever a propriedade privada, não teríamos reconhecido legalmente o direito de usar, gozar e alienar bens que julgássemos nossos. Se o Poder Judiciário e os órgãos que exercem poder de polícia inexistissem, não teríamos como assegurar e ver protegido esse direito, para a maioria tido como sagrado.
Os serviços públicos prestados no Brasil merecem, por certo, aprimoramento – e, quiçá, ampliação -, mas isso não autoriza seja ignorada ou diminuída a sua atual importância para milhões de brasileiros a fim de fundamentar campanha contra a tributação. Andaria melhor a CNDL se ressaltasse a reduzida tributação de rendas e capitais improdutivos quando comparada com a que incide sobre as atividades industriais e comerciais e, especialmente, o consumo.
A mudança da principal base tributária eleita pelo legislador – consumo de bens e serviços – para a renda e o patrimônio elevados e não ligados à atividade produtiva, favoreceria a atividade econômica. Basta interpretar, a contrario sensu, a fala do dirigente nacional da CDL Jovem, Raphael Paganini: “com a alta tributação, os produtos ficam mais caros, então a população compra menos”.
Para Fernando Sainz de Bujanda, expoente do direito tributário e financeiro espanhol, a presunção do fisco-usurpador ou do Estado-ladrão explica-se e é tanto mais difícil de evitar quanto mais o legislador deixar de observar critérios justos de repartição dos encargos tributários. Talvez isso explique a precária conscientização da população promovida pela campanha “O Dia Livre de Impostos”.
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