Arte

O pacto

O pacto


Já é quase madrugada, estou atrasadoe eu não pertenço ao time dos organizados de agenda em dia, sem atropelos, sem pressa, sem tumultos, sem distúrbios, sem transtornos. 

Não me pergunte por que, não me dê dicas, nem orientações, não me aconselhe disciplina, regras, programações.

Meus olhos ardem, minhas pernas latejam, meus pensamentos se perdem no breu e sou só ouvidos nasmotos gritando lá fora.

Agora é a hora, exatamente a hora do sonho, do sono, do descontrole, de perder a mão, descer a mão, passar a mão, dar no pé e este corpo de vontade própria não me diz nada, nada.

Apesar disso, eu tenho um pactocom você, sim.

Uma vez joguei bola no hospital psiquiátrico. Eu usava um jaleco e tinha um crachá, mas jogava no time dos loucos e a gente ria e chutava aquela bola murcha numa quadra cercada por muros altos e traves vazias, sem redes, sem linhas e o goleiro ninguém queria ser. O pacto. 

Firmei ali compromisso com a loucura, com a dor, a confusão, assumi a voz humana, não importa o corpo, a roupa, os dentes, a cor, o sexo, a origem, os cortes, o destino, o tamanho dos muros. 

Não apertei a mão de ninguém, não assinei papel, não proferi palavras de ordem, não chorei, não sorri, não decidi, não parei.

A bola era chutada pelos carasdescalços que estavam inteiros, menos dopados, menos cansados. O drible era arte e a falta era abraçada e brigada e tinha raiva, tensão e risada.

Acabou sem juiz, que não era bem-vindo naquelas paradas, que ali já bastava o mundo, já bastava a ausência, já bastava o caos apitando as ordens dos banhos, dos remédios, das refeições, dos grupos, das noites terríveis, das torturas, dos horrores, das vozes, das verdades.

Eu saí derrotado, vencido. Perdemos, os loucos. Outros loucos venceram, pois eles tinham no time um mais louco ainda, que era goleiro. E era o melhor goleiro do mundo.

Levei comigo o pacto de não deixar morrer a insistência pelo encontro, mesmo quando os muros são altos demais.

Eu nem sabia do pacto. Mas não esqueci daquele dia.

É madrugada, a melhor hora para revelar um segredo e eu tenho um pacto com você. 

Sim. Você nem sabia.

Wagner Rengel

Wagner Rengel quis ser silêncio depois pássaro depois peixe depois vento depois grilo quis ser gente depois nada. Mora em Curitiba.

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