Arte

Óculos escuros

Óculos escuros

Fui buscar Helena na escola. Peguei ela chorando porque a professora de Língua Portuguesa vai parar de dar aulas para ela. Quase chorei junto, por ela e pela notícia. Eu não tive nenhum professor em que sua ausência tenha me feito chorar. Pelo contrário, não fiz laços com eles ao ponto de antecipar uma falta verdadeira. Eram mestres e só, sem encontros, incapazes de sair da linha traçada com um giz branco e o cheiro de álcool do mimeógrafo. Ainda mais com um aluno assustado, pouco aplicado, pouco envolvido, não submetido à cartilha secular do ensino-aprendizagem.  

Especialitas em nichos de mercado dizem que a tal mudança na educação acontecerá com a tecnologia. Apresentam soluções que se encaixam na anestesia das diferenças, tudo remoto, bem distante do encontro, da transmissão humana do desejo pelo conhecimento. Uma ideia de ensino cada vez mais indiferentes aos cheiros, temperaturas, texturas, contradições, paixões.

Acho que a Helena encontrou na suatristeza a minha esperança cansada por mudanças num modelo velho e ultrapassado, com horizontes piores ainda.

E eu, que encontrei a menina chorando, lhe dei um abraço para também receber. Me disse que iria escrever uma cartinha para ela.Concordei. Fez o trajeto inteiro para casa num movimento de conter, soluçar e soltar um choro que já não é mais de arranhões nos joelhos ou por bonecas quebradas. Eu dirigia o carrosem ter mais as soluções óbvias de fazer um curativo, dar um beijo que passa ou de grudar a cabeça da boneca. Não, me senti pequeno, incapaz de salvá-la daquela dor, incapaz de diminuir a dor, de desprezar a dor, incapaz de comparar com dores maiores, perdas maiores. 

O que fiz foi botar um óculos escuros e dar à ela um outro que estava ali e dizer: as pessoas quando choram usam óculos escuros. 

Ela não colocou, mas disse: é verdade.A Mônica usou um óculos para disfarçar quando o Ricardinho não quis namorar com ela. 

No outro dia, não quis ir para aula, mas foi. Na volta, contou que escreveu no quadro da sala #ficaana e concordaram, entre seus colegas, de também escrever #sigaseussonhos. Recebeu um abraço, deu um abraço, se despediram e, com esta historia, pude sentir em mim uma esperançadescansada, renovada nos cheiros, nos laços, nas temperaturas, nas texturas, nos encontros, nas contradições, nas paixões e nos abraços.

Wagner Rengel

Wagner Rengel quis ser silêncio depois pássaro depois peixe depois vento depois grilo quis ser gente depois nada. Mora em Curitiba.

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