Entrar na polêmica da religião é caminhar numa lâmina de fio afiado. Com certeza, haverá os que se sentirão incomodados e vestirão a carapuça como lhes for aprazível, normalmente com a mesma velha cansada retórica: “eu creio no que eu quiser”. Obviamente que sim. E ninguém questiona isso, mas sobre o incêndio ardente na alma daqueles que abraçam a religião como o caminho da salvação pela simples necessidade de se ter em que acreditar. A cineasta inglesa Rose Glass, em seu primeiro longa, fez isso. Botou o dedo na ferida sem dó. E ainda rodopiou no ferimento no terror psicológico SAINT MAUD (2019), quase sem visualização por aqui.
Pra se livrar de uma “culpa” pela morte de um paciente, a enfermeira Maud (Morfydd Clark), que descobrimos ser Katie, agarra-se à religião e percebe que, para estar em paz no julgamento com Deus , precisa “salvar” a alma de uma outra pessoa, no caso a ex-bailarina e coreógrafa Amanda (Jennifer Ehle), que está em estágio avançado de um câncer e, ainda por cima, é ateia. Não veremos profusão de sangue nem imagens fantasmagóricas, mas o desenvolvimento perfeito de uma crise de identidade na protagonista. A demolição emocional é perceptível e muito bem trabalhada pela diretora, tanto que os desafios da fé são postos conscientemente mas sem a clareza de respostas, já que acreditamos pelos olhos de Maud, em estado de completa confusão. Ato divino, demoníaco ou surto psicótico? Cabe ao espectador interpretar e escolher.
Pode parecer pretensão (e deve mesmo ser), mas o vazio que enche a tela em momentos dramáticos são de pura tensão. A atmosfera de terror está à tona, até nos atos sexuais – barreiras e êxtases de Maud para com Deus, e o desastre parece ser inevitável. O acúmulo constante de crises demonstra talento por trás das câmeras. E com um desfecho cheio de significados para, novamente, cada um tirar sua conclusão.
Sutil e opulento, medido e assustador, um equilíbrio desconfortável de tensão e suspense com pathos profundo. Enfim, um filme original. Ou uma fábula sobre o perigo de habitar falsas realidades. Ou sobre como a ausência da existência de Deus é horrível.
Comentários: