Minissérie Inacreditável, da Netflix (Foto: Divulgação)
Resultados de um estudo realizado por organizações internacionais de direitos humanos sugerem que uma em cada três mulheres em todo o mundo já foi (ou ainda será) violentada sexualmente em algum momento de sua vida. No Brasil, ocorre um estupro a cada 8 minutos e houve o aumento de 7,1% de casos de feminicídio, segundo dados publicados na edição 2020 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Os registros de violência doméstica também aumentaram expressivamente, atingindo a marca de uma violência física a cada 2 minutos. Sem dúvida, o Brasil é um país violento para mulheres. Valéria Diez Scarance Fernandes fala da existência de um “generocídio” brasileiro de mulheres e meninas.
Não bastasse a violência de gênero que atravessa o cotidiano das mulheres brasileiras, quando vitimadas, essas mulheres esperam do Estado proteção jurídica e que seus direitos humanos sejam garantidos. Quem não lembra das cenas divulgadas pelo The Intercept Brasil ocorridas na audiência de instrução e julgamento do caso Mariana Ferrer? Do lugar de vítima, Mariana foi interrogada como se fosse ré em um processo penal inquisitorial.
O que ocorreu naquela audiência, tanto na inquirição quanto no resultado do julgamento, não é novidade no Brasil. Não é novidade a vítima de estupro ser acusada e considerada culpada pela violência contra ela praticada. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, 42% dos brasileiros do sexo masculino acreditam que “mulheres que se dão o respeito não são estupradas.”
A obra Estupro: crime ou cortesia? Abordagem sociojurídica de gênero, fruto de uma cuidadosa pesquisa realizada por Sílvia Pimentel, Ana Lúcia P. Schritzmeyer e Valéria Pandjarjian, de elevado rigor metodológico e que teve como objeto as contradições presentes na dinâmica processual que envolve crimes sexuais, demonstra, teórica e empiricamente, a violência patriarcal institucionalizada no sistema de justiça brasileiro e a cultura do estupro presente na liturgia dos julgamentos. As autoras, nos idos de 1998, cunharam a expressão “in dubio pro stereotypo” para explicar o que hoje conhecemos por “cultura do estupro”, mas que há décadas já é amplamente denunciado pelos movimentos feministas. Na dúvida sobre as provas do estupro, “a culpa é da vítima” pela saia curta, vulgaridade, leviandade, negligência e descuido. Afinal, na concepção de muitos, ser estuprada é questão de merecimento. Inacreditável, não é?
Inacreditável! também é o título de uma minissérie da Netflix, baseada em uma história real, que retrata a exaustão e o trauma decorrente do processo de revitimização de uma jovem de 18 anos, vítima de estupro. A série retrata as consequências emocionais, psíquicas e sociais sofridas pela vítima de violência sexual, então desacreditada pelos investigadores do caso, somadas às violências experimentadas nos espaços institucionais que deveriam ser de proteção e garantia de direitos humanos.
No julgamento do caso Mariana Ferrer, a vítima chegou a chorar durante a audiência e a exigir que fosse tratada com respeito, porém, o magistrado permitiu que o advogado continuasse a inquirição da forma como estava sendo realizada. A reação de total desamparo da vítima perante o promotor de justiça, o advogado do réu e o magistrado expôs para o país a vulnerabilidade de quem está exposta a um sistema que (re)produz violência e opressão. Diante da repercussão que o caso Mariana Ferrer provocou na mídia e nas redes sociais, a Câmara dos Deputados aprovou no dia 18 de março o Projeto de Lei nº 5.096/20, que altera o Código de Processo Penal dispondo que “na audiência de instrução e julgamento de processos que apurem crimes contra a dignidade sexual, todas as partes presentes no ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo, sob pena de responsabilização, em caso de omissão.”
Além disso, passa a ser “vedado a qualquer das partes e ao magistrado manifestarem-se sobre fatos e provas que não constem nos autos, sob pena de responsabilização junto aos órgãos de correição competentes e à Ordem dos Advogados do Brasil”, a fim de coibir a perpetuação de uma narrativa que prestigia a cultura do estupro e a culpabilização da vítima. O Projeto de Lei nº 5.096/20 segue para análise e votação no Senado. Se aprovada, essa alteração no Código de Processo Penal não promoverá uma mudança significativa no sistema de justiça patriarcal brasileiro. Acredite. Contudo, passará a prever, para o procedimento da oitiva, uma garantia processual à dignidade da vítima de violência sexual e isto precisa ser destacado como o reconhecimento de uma histórica e, por vezes, inacreditável violação a direitos humanos de mulheres vítimas de violência sexual, quando do julgamento dos crimes contra elas praticados.
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