Opinião

Paola Hakenhaar: “Mamy! Me leva daqui!”

Paola Hakenhaar: “Mamy! Me leva daqui!”
Bansky

Pandemia, ano dois. Inominável, ano três. Estamos em 2021, no auge da caretice, da moral armada, do conservadorismo cafona, da canalhice, do negacionismo. O retrocesso é gigante (tem nome) e segue à galope de mãos dadas com fascismo, racismo, machismo, sexismo, especismo e outros ismos de dominação. 

Aos que se importam, não há como aguentar. Nem aquele “samba pra distrair” dá conta mais. A boa nova para uma professora exausta: julho está chegando e com ele, o recesso. Mas julho também me lembra um dos melhores acontecimentos da cultura. Nele, dia 13, comemoramos o Dia Internacional do Rock. Por isso, hoje quero um respiro. Quero falar de rock, mas não só disso. 

Precisamos sair daqui.

“Não há nada novo sob o sol, e a eterna repetição das coisas é a eterna repetição dos males”, disse Eça de Queirós. Nada é novo, nenhum dos ismos, muito menos a canalhice. Por não ser novidade, significa que temos acúmulo histórico e cultural para ler, ouvir, compreender e transformar o presente. Quem sabe, encontrar uma saída, sem fetiches positivistas e soberanas verdades. Precisamos de uma saída. Transgressora, será? Não sei.

Só sei que precisamos sair daqui.

O negacionismo da ciência, a ideia de uma neutralidade no ponto de vista, “menos emoção e mais razão”, política armamentista, ideias supremacistas, o empobrecimento das ciências, o pensamento ortodoxo, religião, família, propriedade e tradição. Tudo é contemporâneo e ao mesmo tempo tão embolorado. E como estamos? Embotados.

Aos que se importam (repito), está insuportável assistir ao noticiário no país do Inominável. Alguns exemplos dos últimos dias: o feminicídio brutal de Ana Paula Campestrini; o estupro da moça que disse ter sido violentada por dois policiais militares dentro de uma viatura (!), mas que aos olhos da Justiça Militar não houve estupro porque ela “nada fez para se ver livre da situação”(!!) e que “não reagiu”(!!!); a violência do Inominável contra uma mulher jornalista; o estupro coletivo (e corretivo) do jovem gay; a CPI; Salles sai e o desmonte fica; PL 490; os laudos periciais da chacina do Jacarezinho, o esquema da Covaxin (!!!!), a motociata de “adictos da testosterona”… Os exemplos não se esgotam. O que se esgota é a minha paciência para descrevê-los. Enfim, vamos ao rock.

Esses tempos retomei uma música na flauta. Bourée, de Jethro Tull. Uma amiga viu minhas investidas e me mandou uma mensagem: “Amiga, que legal! Precisamos de rock!”. Li essa mensagem no contexto das nossas conversas e entendi o que ela quis dizer. Não só entendi como concordei.

Até porque, precisamos sair daqui, seja com Let It Be ou Let It Bleed.

Nos anos dourados, a sociedade estadunidense e alguns países da Europa viviam o paradigma modernista do Welfare State: prosperidade econômica, pleno emprego e políticas de inclusão social. Nesse contexto social, diante de um Estado assimilativo, o desviante era visto como minoria, dissidente, sem os valores apreciados por esse modelo social: puritanismo e trabalho – o ethos burguês de Weber.

O rock’n’roll tem origem nesse contexto totalizante, como uma contestação aos valores estruturantes do ethos burguês. 

A raiz do rock se nutria de ritmos e estilos dissonantes da sociedade puritana. Com forte inspiração na música negra, nos elementos do jazz, blues entre outros estilos que rompiam com o recato e a monotonia do cotidiano daquela sociedade. James Dean e Elvis Presley são ícones desse tempo.

Contudo, há quem diga que Dean e Presley estavam mais para significantes do “rebelde sem causa” e não tanto para uma contestação insurgente ao establishment.  Concordo. Há quem aposta no quarteto de Liverpool como sendo o símbolo do rock dos anos dourados. Inegável, embora eu esteja mais para o time Let It Bleed. 

The Beatles inaugurou um novo momento, com estilo próprio e sucessos estratosféricos. Em contato com outros ícones desse tempo – Bob Dylan, por exemplo -, o quarteto mudou a estética good boys assimilando uma plasticidade contracultural no visual, nas músicas e nas performances.  Nessa fase, o quarteto aliou-se à psicodelia, à bandeira “Paz e Amor” e ao movimento Flower Power.

Seria de uma pretensão descabida resumir aqui o big bang dos anos 60 e todas as suas complexidades geopolíticas, sociais e culturais: Guerra Fria, Maio de 68, Movimentos Feministas, Movimento Black Power, Woodstock, Movimento pelos Direitos Civis, Tropicalismo… Por isso, percorro apenas um milímetro desse cosmos.

Se Beatles significavam os “bons garotos” que se rebelaram, tornando-se ícones do movimento Flower Power, os Rolling Stones representavam desde sua origem o lado profano do rock, a parte maldita e perversa. Stones afrontou o puritanismo com músicas e performances subversivas e provocativas. (I can’t get no) Satisfaction é grande símbolo dessa ousadia.

Voltemos ao caos. Não há como descolar aqueles episódios do noticiário, cada vez mais cotidianos, do retrocesso que tem nome: bolsonarismo. Quando Weber fala do ethos burguês, situado em “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, apresenta o quanto esse ethos orienta as ações no mundo da vida e forma subjetividades a partir dos valores do trabalho e do puritanismo. Essa é a interpretação do ethos burguês weberiano feita pelo professor Moysés da Fontoura Pinto Neto. Vou me apropriar dela para, a partir dessa percepção, pensar o ethos bolsonarista.

Por óbvio, não vivemos um Estado de bem-estar social (se é que em algum lugar do mundo se viveu). Contudo, ainda assim é possível traçar um paralelo. Assim como o ethos burguês, o ethos bolsonarista orienta ações e produz subjetividades. No caso, orienta ações violentas, machistas, misóginas, lgbtfóbicas e racistas; forma subjetividades intolerantes, preconceituosas e fascistas. Tudo isso porque seu espírito é dotado de ódio às minorias, às mulheres e aos dissonantes, de idolatria às armas, conservadorismo cafona, canalhice e do persistente negacionismo da ciência, da existência humana, não-humana e da natureza. 

Tem o terraplanismo também, mas sobre isso precisaríamos de uma doce psicodelia para entrar no imaginário dessa gente. No momento, passo. Hoje, meu doce delírio é vacina (e impeachment).

Quando minha amiga disse “precisamos de rock” eu entendi que não só precisamos ouvir e vivenciar a experiência da música, mas precisamos do sentido que o rock tem em nossas vidas e subjetividades. Um ethos rock’n’roll, eu diria. A vacina contra embotamento. O desvio, a contracultura, a irreverência, a subversão, os ruídos dissonantes, a insurgência e a ousadia compõem o sentido rock’n’roll que aponta para uma direção. Ouço”  uma luz no fim do túnel. Talvez esteja lá a saída – até porque, nunca ouvi “lira” tocar rock’n’roll. Instrumento arcaico, embolorado decerto.

A saída, não sei por qual via, se Let it Be ou Let it Bleed seriam suficientes. Talvez o niilismo punk nos diga: No Future. Só sei que precisamos sair daqui e “eu quero partir, requebrando um rock and roll”!

Paola Hakenhaar

Mestranda em Direito (UFPR). Professora de Direito Penal (Unisociesc). Advogada Feminista.

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