Quando apresentei um contraponto às abordagens de Victor Emendörfer Neto (Parte 1), escolhi trilhar o percurso da crítica feminista ao Direito. Propus pensarmos os direitos dos animais para além da lógica instrumental do Direito, desafiando a cultura patriarcal que hierarquiza indivíduos, espécies e natureza sob a lógica da dominação masculina.
No texto anterior apresentei meu argumento e trouxe para o diálogo a filósofa engajada Maria Alice da Silva com sua definição de direitos animais, além de outras referências. Esteve presente também o Sr. Direito – como uma tentativa de ilustração debochada à narrativa. Para este texto, ainda quero a companhia de Maria Alice e de Victor, mas também de Darwinn Harnack, Daniela Rosendo e Marti Kheel, com sua gata.
Definitivamente, não estou sozinha e por isso, este texto é também uma homenagem ao encontro.
Quando vejo meu reflexo na tela escura do computador, vejo meu rosto. Seria este um encontro? Talvez. Porém, gosto mesmo da ideia do “Eu-com-o-Outro”, assim como Lévinas ensina em sua filosofia.
Reconhecer o Outro pode ser um caminho para a empatia e quando não se está só nessa busca, percebemos o encontro. Este foi o sentimento que tive quando li o último texto de Victor. Não apenas por saber que Darwinn é comigo uma “contramola que resiste”. Sem sombra de dúvida, ter Darwinn na trincheira fez florescer um sentimento de comunhão. Além do xale, ao que parece, temos outro gosto em comum: o da insurgência à opressão.
Victor iniciou seu texto com uma cena muito recorrente em minha vida, embora não soubesse, mas que intuiu com muita sensibilidade. Como pesquisadora do Direito, a hipótese de uma solidão se explica pelo próprio objeto de pesquisa.
“Pausas de mil compassos” são muito comuns entre os vastos parágrafos de quem produz pesquisa no Brasil, pelos motivos históricos e atuais que explicam a ausência de deferência à pesquisa nessa terrinha bendita, sobretudo ao lugar da mulher pesquisadora com tempo precarizado, maternidade questionada, trabalho invisibilizado que por vezes emudecem a retomada do compasso desejavelmente sonoro, ritmado, afinado e de bom tom – quando não, “bravíssimo!” Contudo, quem pesquisa à guisa de uma crítica ecofeminista ao Direito, ocupa um lugar à margem da margem. Nesta borda, os encontros são esperançados.
Hoje, inspirada pelos sentimentos advindos da partilha de ideias e utopias, não há solidão. Eu diria até que estou na companhia de ‘um coração dividido entre a esperança e a razão.” É isso, “prepare o seu coração”, pois o afeto tem propósito nesse texto, por isso essa modesta “dose de lirismo.”
Quando ouso pular o muro que faz divisa do latifúndio improdutivo do Sr. Caducocom a imensidão fecunda da Sábia Filosofia – tal qual uma gata insurgente e insubordinada às expectativas alheias–eu me encontro. Melhor ainda, tenho fartos encontros!
Encontro um campo florido de respostas e de uma necessária utopia – aquela que Galeano dizia. Encontro ecofeministas animalistas, eticistas animalistas e críticos ao Direito. Definitivamente, não estou só e acredito na potência dos encontros, “embora haja tanto desencontro pela vida.”
Marti Kheel, filósofa ecofeminista, teve um desses encontros definitivos em sua vida. Quando veio ao Brasil, em 2010, para uma palestra realizada em Florianópolis, na UFSC, relatou sua trajetória com a questão animal e todo o percurso até chegar ao ecofeminismo.
Marti disse assim: “há trinta anos eu não sabia nada sobre ecofeminismo ou libertação animal. Então, tive um encontro com um animal que mudou o curso da minha vida.” Marti encontrou uma gata em situação de abandono. A gata, como fizera o “coelho de Alice”, despertou Marti, impulsionando-a para uma busca importante.
Na trajetória de Marti não havia a pressa afobada do “coelho de Alice”, mas havia a urgência de um outro encontro: o da emergência de uma ética que fizesse frente ao modelo dominante na ética ocidental.
A ética dominante a que se refere Marti é a mesma que circula predominantemente nos textos, petições e julgados do Direito Animal brasileiro. Para ficar apenas em um exemplo, trago um julgado bastante festejado pelos juristas animalistas, considerado paradigmático do Direito Animal brasileiro: a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.984, sobre a vaquejada, no ano de 2016.
No julgamento da ADI nº 4.984, a maioria dos votos favoráveis à inconstitucionalidade seguiu pela fundamentação tradicional do Tribunal, em consonância com os julgamentos anteriores no sentido de desqualificar práticas cruéis como manifestações culturais. A novidade neste julgado foi trazida pelos votos do ministro Luís Roberto Barroso e da ministra Rosa Weber.
No entanto, o voto considerado de vanguarda em perspectiva animalista foi o proferido pelo ministro Luís Roberto Barroso, que introduziu argumentos da ética animal no Supremo Tribunal Federal. Em exame ao art. 225, § 1º, VII, da Constituição Federal, Barroso afirma que a Constituição reconheceu a senciência e o interesse que os animais possuem em não sofrer. A partir desse argumento, marcando o interesse do próprio animal, o ministro superou a leitura tradicional que defende a natureza de interesse difuso na proteção animal.
Barroso argumentou seu voto em perspectiva ético-animalista, utilizou o termo especismo para criticar o regime dado aos animais não humanos pelo Código Civil. O ministro trouxe nomes de conhecidos filósofos da ética animal para o centro do fundamento do seu voto, como Peter Singer, Tom Regan e Richard Ryder.
Não tardou e o backlash à decisão do STF chegou no ano seguinte via Poder Legislativo, em forma de Emenda à Constituição que acrescentou o § 7º no art. 225, deixando de considerar cruéis as práticas desportivas que utilizem animais em manifestações culturais.
Foram ajuizadas duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade em resposta a esta Emenda Constitucional, porém, o debate em perspectiva ético-animalista foi completamente esvaziado, pois não reverberou nessas novas ações.
“De repente, do riso, fez-se o pranto.” É…O Sr. Direito costuma pregar peças.
Essa situação demonstra, empiricamente e não isoladamente, o quão limitadas e frustrantes são as saídas tradicionais ofertadas pelo sistema jurídico no reconhecimento dos direitos animais, pois a interpretação jurídica desses direitos é manejada ao sabor dos seus intérpretes e legisladores.
Ao passo que se reconhece, por interpretação constitucional, a senciência e o interesse que os animais possuem em não sofrer, “de repente, não mais que de repente”, estes direitos desaparecem por outra interpretação? Esta questão se aproxima da questão original, do texto da gata de Baudelaire.
Dos diálogos com Victor creio que chegamos a um acordo: sobre os limites do Direito, a seriedade do tema e a importância de uma ética. Victor imagina essa ética como “uma jovem luminosa” capaz de abrir caminhos a um outro horizonte civilizatório. Concordo com Victor e, digo mais: esta ética já existe, faz frente ao modelo dominante na ética ocidental, mas parece estar à margem da margem dos debates animalistas no Direito brasileiro. A “jovem luminosa”, esperançosa por encontros, precisa de espaço e de escuta.
Victor disse algo provocativo sobre o Sr. Direito e sobre a disputa no reconhecimento dos direitos animais pelo sistema jurídico, que perpassa a questão da linguagem: “O Sr. Direito se alimenta de linguagem. Basta lhe empurrar palavras goela abaixo.” Quando li, achei graça e ri. Sou daquelas que não têm muita maturidade com metáforas, elaboro imagens imediatamente e devaneio.
Recobrada a seriedade, fiquei pensando sobre essa metáfora da alimentação e vi nela um gap para este texto. Isso fez eu mudar um pouco os objetivos que havia pensado inicialmente, prometidos no último, e que ficarão para uma próxima.
Considerando, em hipótese, uma alternativa por meio da metáfora da alimentação, poderíamos mudar a dieta do Sr. Direito. Uma dieta vegana, por certo. Contudo, seria essa uma saída? Optar por outras fontes de nutrientes e seguir o mantra “você é o que você come”. Será que o Sr. Direito seria outro com uma dieta vegana? Certamente ele daria uma boa rejuvenescida na aparência, que sabemos ser efêmera. Este é o ponto, já volto nele.
Naquele acórdão da vaquejada, houve uma discussão épica entre o Ministro Luiz Fux e o Ministro Marco Aurélio que merece ser compartilhada. Na discussão os ministros tocaram no tema da alimentação.
A discussão inicia com Fux narrando com detalhes as etapas do abate, percorrendo desde o nascimento dos bezerros, passando pelas etapas estressantes e violentas da existência dos animais na indústria da carne, até o “boi virar filé”. Destaca, muito timidamente, alguns impactos transversais dessa produção.
Termina dizendo: “Senhor Presidente, é assim que se alimenta a humanidade, e a Constituição Federal estabelece que a alimentação é um direto social, inalienável. Eu pergunto a Vossas Excelências, no plano empírico: existe meio mais cruel de tratamento do animal do que o abate tradicional no Brasil, que não é vedado pela Constituição?”
Marco Aurélio irrompe – ao que parece muito afrontado – e indaga: “Vossa Excelência não está preconizando que sejamos, todos, vegetarianos!” Então, Barroso entra na cena e encerra a discussão: “Em algum lugar do futuro seremos todos.” Sempre que leio essa parte do acórdão eu imagino os óculos escuros do meme surgindo na cena, indo em direção a Barroso, ao som de “Turn Down for What.” Sim, delírios de Paola…
Voltando ao ponto. A mudança na dieta do Sr. Direito não o mudaria, não o faria enxergar o Outro. Talvez eu até o convidasse para um encontro, um jantar vegano, provavelmente. No entanto, nada me garante que este encontro aconteceria, mesmo que estivéssemos juntos à mesa.
É preciso “mais que palavras.”
Quando a ética animal chega à Corte Constitucional faz história, promove debates nunca antes vistos e por isso festejamos. É necessário reconhecer esse fato como uma conquista, por mais que as forças contrárias sejam muito maiores e mais complexas. Contudo, a violência contra animais tem raízes comuns a outras violências. Enquanto o sistema de justiça não as considerar e reconhecer – em toda sua complexidade -,“sabe aquela esperança de tudo se ajeitar? Pode esquecer.”
A compreensão conceitual e empírica da raiz que conecta estas violências possibilita ao Estado e à sociedade avançarem para uma transformação cultural que considere moralmente todos os indivíduos como sujeitos dignos de uma vida sem violência e sobretudo, como sujeitos de direitos jurídicos e políticos. Precisamos de uma ética que promova uma transformação desta envergadura.
Marti, em seu encontro com o ecofeminismo, levantou a seguinte questão: “como, então, o ecofeminismo pode contribuir para a ética animal?” A resposta: através de uma ética do cuidado ecofeminista. A filósofa parte da premissa de que a desvalorização das mulheres e da natureza tem andado de mãos dadas na sociedade ocidental patriarcal.
Quando eu trouxe Maria Alice para apresentar o conceito de direitos animais enquanto direito moral, político e jurídico, reconhecendo-se nessa compreensão a vulnerabilidade e a liberdade como condições para se ter direitos, foi também para trazer o seu alerta, enquanto pensadora, para o fato de que “entender os direitos animais apenas como direitos jurídicos é insuficiente, pois implicaria em não reconhecer a complexidade que envolve a tutela dos animais não humanos. Não enfrentar as perspectivas ética e política desses direitos deixaria espaços vazios de proteção e faria perpetuar a manutenção de opressões não percebidas pela ótica restrita do sistema jurídico.”
Na imagem que apresentei do Sr. Direito, no último texto, embora bastante caricata, restou minimamente óbvio o quanto esse “sujeito” se nutre de valores e signos patriarcais, por isso, seu modus operandi é digerido e dirigido pela lógica da dominação masculina. Precisamos de um novo paradigma, de uma nova ética.
“Trocando em miúdos”, uma justiça social, ambiental e interespécies em perspectiva ecofeminista, como propõeDaniela Rosendo, jurista e filósofa ecofeminista animalista. Daniela defende “a concepção de uma justiça interseccional, inclusiva e não discriminatória, que supere a tricotomia moral que usualmente segrega a justiça para humanos, animais ou natureza.” Para Daniela, a justiça não pode ser visualizada de uma perspectiva individual, senão estrutural, orientada moralmente pela ética sensível ao cuidado.”
Eis que me deparo com a urgência da síntese, qualidade que este espaço estima apreço e que há dois textos é só decepção – por isso me apresso, ainda que tarde.
Quando Marti encontrou sua gata em situação de abandono, a empatia impulsionou-a em direção ao encontro do ecofeminismo. Neste sentido, pela empatia do despertar que impulsiona, são para mim Daniela Rosendo e Maria Alice da Silva, pensadoras fundamentais sobre o tema no Brasil. Impulsionam-me pela partilha de tanto. Darwinn, por se somar à resistência. Victor, por renovar em mim as possibilidades de pensar e debater essas questões. Esse é o afeto que faz com que eu perceba nessas pessoas um caminho. Por me reconhecer nesses rostos, eu me encontro – como se fosse tertúlia.
Tertúlia é uma prática cultural entre amigos e pessoas que partilham um horizonte em comum. Embora minhas referências sejam as tertúlias da serra catarinense – regadas a chimarrão e aquecidas com fogo de chão -, tertúlia tem origem hispânica e por lá o propósito, além do encontro, são experiências dialógicas, literárias e culturais.
Ao modo do último texto, encerro este com uma proposta, mas desta vez faço uma promessa. Temas como este pedem uma boa dose de afeto e empatia. Em homenagem ao encontro, proponho uma tertúlia, assim que possível. Para levantarmos as palavras deitadas, despertarmos outras hipóteses e com elas alguns devaneios. Minha promessa: um bom malbec à altura desse encontro. Vou de xale. Quem vai?
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