Hoje cedo recebi uma chamada de vídeo. Era minha filha. Ou melhor: minha neta, Laura, quatro aninhos recém completos. Ela é quem segura o celular e me ordena:
“Vovó, você tem que encontrar seu coelhinho”.
Pensei comigo: Coelhinho? Como assim? Se estou trancada em casa há tanto tempo, quem teria trazido meu presente de Páscoa? Como? Logo entendi: foi Inês, a vizinha de porta. Ela tem a chave do meu apê. Minha filha deve ter lhe pedido pra esconder o coelhinho quando eu saí pra tomar a vacina.
“Vamos, vovó, você tá muito lenta.”
Estava mesmo. Lentíssima. Tinha acabado de acordar. Fui procurar o coelhinho na varanda. Fui respirar. O sol já respingava nas orquídeas. De repente me vi fazendo outras procuras entre as folhas de meu minúsculo jardim. Procurei um sabor da infância. Procurei Deus entre as macegas. Procurei um coelho falante como o de Alice que me contasse segredos e me levasse a outros mundos. Pensei comigo: o que procuras, Cecília? LSD?
“Tá frio, vovó, você não tá procurando bem.”
Voltei pra sala. Revirei os autores na estante. Quintana, Drummond, Mallarmé. Quem sabe o coelhinho fosse um verso. Abri um livro de Cecília que sempre abro. Li o poema que sempre leio. Parei naqueles versos que nunca consigo ultrapassar:
Minha família anda longe.
Reflete-se em minha vida,
Mas não acontece nada:
Por mais que eu esteja lembrada,
Ela se faz esquecida…
Pensei comigo: quanto esquecimento ainda posso suportar? Minha solidão é tão implacável. Minha única companhia é o espectro de Cecília. É tão pouco. É tudo tão vazio.
“Vovó, vou te dar uma dica: vai aonde tá Jesus.”
Entendi. Fui até o pequeno altar no corredor. Como sempre, fitei os olhos azuis do Cristo na capa da Bíblia. Ele é tão lindo. Lembrei daquele verso de Lucas e peguei o Livro. Um pequeno envelope, escondido atrás dele, caiu no chão. Abri. Havia um desenho da Laurinha: eu e ela de mãos dadas num campo cheio de flores. No canto, com a caligrafia de minha filha, uma mensagem: “Estamos muito felizes porque a Vovó foi vacinada. Nós nos veremos em breve!” No verso da folha, com batons coloridos, beijos pra mim.
“Por que você tá chorando, vovó?”
“Por nada, meu amor, por nada. É só saudade.”
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