Ouço o noticiário internacional – a reunião do G7, a cúpula da OTAN, o encontro entre Biden e Putin – e desligo a TV. Passo os olhos sobre o mapa-múndi. Fixo um ponto: Moscou. Fixo outros dois: Pequim, Washington. Enfim um quarto ponto: Jerusalém. Ligo-os com retas. Surge, com uma simetria inquietante, um losango. E um insight.
A teoria geopolítica losangular – segundo a expressão que então criei – propõe uma visão de mundo a partir da interação dos quatro pontos marcados no mapa. Modéstia à parte, ela tem dois méritos. Evita o artificialismo das teorias bipolares: “ocidente x oriente” ou “EUA x China”, entre outros exemplos. E não cai no clichê das teorias multipolares, que compõem um mosaico confuso e estéril.
Ao relacionar as quatro cidades, a teoria remonta a quatro grandes forças da geopolítica atual. Washington, armada até os dentes com o maior arsenal da história, é o quartel-general do ocidente. Pequim, governando a economia que logo será a maior do mundo, parece esconder na manga – a metáfora para a opacidade de suas altas instâncias – um poder tão imenso quanto assustador. Moscou tem um poderio militar cujas possibilidades são incogitáveis: diante de Putin, da sutileza pós-moderna de suas armas aquosas, uma dúvida permanente nos assalta: afinal, já estamos em guerra? Finalmente, Jerusalém é a capital dos três grandes monoteísmos: o solo sagrado objeto de uma disputa que parece eterna. A teoria losangular foca a tensão entre essas quatro forças.
Alguém poderá apontar o alinhamento entre EUA e Israel, de um lado, e entre China e Rússia, de outro. E então concluir: não há senão dois lados em disputa. Esta objeção me parece simplista. Nem Israel é um simples aliado dos EUA, nem a Rússia da China. As quatro forças se chocam e se interpenetram contínua e misteriosamente, como os quatro ventos de cada cantos do mundo. Calma, minha teoria não crê em terra plana: “cantos do mundo” é só força de expressão.
Washington é a sede do poder mais temível, mas também do mais permeável. A área de influência dos EUA recobre grandes extensões dos cinco continentes. Mas seu centro nervoso está exposto: sua democracia sofre claramente a ação de forças dispersas, em grande medida externas. Quanto de Putin não há na eleição de Trump? E quanto de Netanyahu?
Jerusalém, o limite do ocidente, tem nos americanos mais que parceiros: são estes os fiadores de Israel. Mas se a cidade é o berço da igreja romana cuja herança demarca os limites existenciais do ocidente, é também o da igreja ortodoxa que consolida o poder de Putin a leste dos Urais. Sem contar que é a terra sagrada do islã, base dos regimes de tantas nações onde a Rússia tem inegável influência. Mesmo o ateísmo de Pequim rescende a herança judaica. O regime chinês – e sem dúvida também o russo – têm uma ligação atávica com Israel: cite-se, como exemplo decisivo, Marx. Os judeus se relacionam com os grandes impérios do mundo desde o exílio no Egito. A história dos EUA tem três séculos; a de Israel, cinco mil anos.
A China passou a controlar neste ano o porto de Haifa, o maior de Israel e sede da marinha do país. É um sinal óbvio de aproximação. Mas não de alinhamento geopolítico. Pequim cultiva relações com turcos, sírios e iranianos. Com todo o oriente médio. De certa forma, com todo o mundo. É o tal ‘soft power’, tão sutil quanto penetrante. A postura dos chineses em relação ao Brasil é um exemplo claro: Bolsonaro finge lutar contra a China anticristã, enquanto abre as pernas à China pró-mercado.
Putin não é muito diferente. Também sua liderança se apoia nesse tipo de conservadorismo hipócrita, que afeta fervor religioso. Mas seu regime depende do apoio nada fervoroso dos chineses. Há porém, entre ele e Bolsonaro, uma diferença fundamental: Putin tem um enorme poderio geopolítico, bastante pra confrontar qualquer outro – inclusive o chinês. De certa forma, a atual arquitetura das relações internacionais foi concebida na Rússia, muito pela influência sombria de Surkov. A sua guerra híbrida não permite alianças radicais: todos podem ser inimigos de todos.
O losango é uma figura instável. As linhas que ligam seus quatro pólos são elétricas: fluxos de energia vêm e vão, e variam de intensidade, e se adensam e se deformam. Entre essas linhas, dentro e fora do losango, a tensão do mundo traz o influxo de infinitas variáveis. A teoria, como eu disse, foi só um insight. Uma descarga elétrica em meus neurônios fatigados. Minha pobre geometria quer resistir ao caos de uma geopolítica feita de metadados e hipóteses obscuras. Não há de resistir pra sempre. Mas pode, com sorte, ter alguma efêmera utilidade.
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