Horas após a chacina de Jacarezinho, Conrado Hübner tuitou:
“A milícia civil do Rio, que curiosamente concentra suas operações nas áreas do tráfico, não nas suas próprias áreas, levaram um recado de Jair ao STF. Esse regime ainda não tem nome.“
O autor do tuíte é professor de direito constitucional da USP, doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt. Assim ele é apresentado na Folha de São Paulo, publicação em que assina uma coluna. Sua produção científica é vasta e respeitada. Seu currículo é impressionante. Conrado escreveu obras de grande destaque na atual literatura jurídica brasileira. E escreve textos indispensáveis, com notável assiduidade, em círculos menos formais de nossa cultura; em outras palavras, ele tem sido uma voz ativa e brilhante nas redes sociais.
Por tudo isso, seu tuíte me impressionou. Ou melhor: me assustou. É uma mensagem grave, candente, furiosa. Sente-se Conrado com as mãos trêmulas ao digitá-la. O erro de concordância, tão incomum para um escritor da sua classe, denota a angústia que o afligia. O tuíte é um desabafo, um protesto, um grito.
“Meramente ilativo”, disse entretanto, a respeito disso, um grande amigo meu, também ele colunista da Abertura e um grande apreciador dos escritos de Conrado. De fato, o tuíte assume premissas de difícil demonstração; e esboça conclusões nebulosas – ainda que inequivocamente inquietantes. Há espaços vagos na mensagem. Parece haver uma distância insuperável entre nós e seu sentido mais rigoroso.
As premissas da mensagem são duas: a ação policial em Jacarezinho foi, na verdade, uma ação miliciana; e atendeu ao comando, em última instância, de Jotabê. Conrado não se preocupa em demonstrá-las; escreve como se todos soubéssemos disso. Mas nem todos sabemos. Há muitos, é verdade, que têm falado das ligações entre Jair e as milícias. Há fatos, notórios e incontroversos, que revelam proximidade entre um e outras. Mas insisto: as premissas não estão demonstradas; e nem o tuíte de Conrado pretendia fazê-lo. Sou forçado a concordar com meu amigo: a mensagem é ilativa.
Mas o que importa nessa mensagem, o que realmente Conrado pretendia demonstrar, são precisamente suas ilações. O escritor nos convida a assumir aquelas premissas (ainda que as coloquemos entre parênteses, como se deixássemos pra depois sua verificação, como se largássemos tudo para nos aventurarmos nessa epítrope); e, baseados nelas, a darmos o salto até o lugar que nos mostra: um lugar sinistro, obscuro – pura perplexidade diante dum horizonte aterrador.
Conrado vislumbra, nesse lugar oprimido sob um regime ainda sem nome, um recado. Neste, uma hipótese: a comunicação codificada entre duas altas – talvez as mais altas – instâncias desse regime: a Presidência e o STF. Esta suposta comunicação é duplamente criminosa. Porque consiste numa grave ameaça à instituição mais crucial da democracia. E porque é ele mesma, a comunicação, um crime: o recado é precisamente a consumação performática das 28 execuções de Jacarezinho (também esta é uma premissa implícita no tuíte: foram execuções). Conrado sugere um combate – literalmente sangrento – entre as mais altas instâncias da República.
A República, nessa hipótese, estaria sob uma ameaça terrível e inédita. Essa ameaça dirige-se não só às instituições imprescindíveis a um governo democrático: ela abala os valores básicos da sociedade. Conrado vislumbra não apenas a possibilidade do golpe: ele teme a tomada do poder por facções criminosas. Não se trata apenas do temor de uma nova “ditadura militar” ou coisa parecida: é a perspectiva de um governo miliciano, capaz de executar chacinas para mandar “recados”.
Um regime ainda sem nome. Essa ausência atinge Conrado em seu íntimo: ele é um grande constitucionalista, um estudioso das formas de governo, uma das pessoas mais capazes de dar um nome ao “regime” que vislumbra – não sei se no horizonte ou se já sobre nossas cabeças. Mas não há nome. Apenas fatos, imagens, pistas: a reunião com o Governador no dia 5, o sangue manchando corpos ainda pulsantes, as pegadas das operações policiais nos subúrbios cariocas.
O tuíte talvez seja mesmo meramente ilativo. O advérbio, que meu amigo fez questão de antepor ao adjetivo empolado, denotava ainda menos crédito na hipótese lançada pelo escritor. Talvez ele, meu amigo, tenha razão. Talvez as premissas de Conrado sejam inexatas. Talvez suas conclusões reflitam o calor – e a dor – do momento. Talvez ele estivesse abalado depois de mais uma chacina. Mas agora são 13 horas e 7 minutos de 12 de maio de 2021, cinco dias após o tuíte, e ele ainda está lá, na conta do autor. Conrado não parece arrependido. E meu grande amigo, diante das tais meras ilações, parece cada vez mais assustado.
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