Produzida, originalmente, pela BBC One, a antológica série ‘Small Axe’ (2020), 5 filmes que contam histórias distintas sobre a vida de imigrantes negros das Índias Ocidentais em Londres dos anos 60 aos 80, é brilhante e obrigatória. Em tempos onde estudar o passado é visto como démodé, os sinais enviados por esta obra são como um soco no estômago naqueles que normalizam o racismo estrutural da nossa sociedade. Sob direção de Steve McQueen, o primeiro diretor negro a ser laureado com o Óscar pelo excelente filme ’12 Anos de Escravidão’ (2013), vamos aos capítulos da série.
O primeiro filme é OS NOVE DO MANGROVE. E, aqui, não se trata apenas de dramatizar o julgamento dos ativistas em questão, mas desnudar a podridão de um sistema judiciário legal, além de ser um retrato íntimo dos espaços das pessoas negras. É uma tapeçaria vibrante de dignidade e determinação daqueles que sofreram na pele o racismo explícito da Scotland Yard da primeira metade do século XX. Um capítulo de abertura que detona não só como obra, mas como uma declaração de amor.
LOVERS ROCK, o segundo, é um epinício às canções que embalaram gerações, botando a música como protagonista de um povo oprimido que queria se divertir que nem os londrinos brancos. A questão sociológica do racismo é debatida ao som de reggaes, dubs, pogos e, principalmente, lovers rocks, que é uma variação romântica do reggae criada justamente pelos imigrantes caribenhos. Pulsante e catártica, a cena de dez minutos onde os atores cantam ‘Silly Games’ à capela é a explosão em coro da expurgação de todo um sofrimento. É o radicalismo de uma rebelião racial sob a resiliência alegre da comunidade. Uma obra hipnotizante que não aborda somente o amor em movimento, pois transmite o amor que cora, dança, canta e transcende.
Como dizia Bob Marley, “se vocês são uma grande árvore, nós somos um pequeno machado” (o nome ‘small axe’ vem daqui). Assim, em VERMELHO, BRANCO E AZUL, o terceiro capítulo, a metaforização de tal luta está na transformação estrutural contra o racismo, principalmente nas academias policiais londrinas. Leroy Logan (John Boyega) virou um oficial da PM e buscou reformar internamente o pensamento opressor vigente, passando por maus bocados e sofrendo a discriminação racial na pele. Todo o conteúdo moral da comunidade é analisado e problematizado, pois o público deve exercer um papel mais ativo e coordenado na obtenção de segurança, já que a polícia é o público e o público é a polícia. Ainda mais quando a delinquência individual cai normalmente sobre a população negra. Um verdadeiro estudo social.
Talvez ALEX WHEATLE, o quarto filme, seja o mais artístico da série, pois biografa sem didatismo o ambiente de descobertas do romancista Alex Wheatle (Sheyi Cole), importante escritor radicado no Brixton. Com foco no pertencimento, a luta contra a injustiça racial ganha contornos ancestrais, quando é preciso conhecer o passado para entender o futuro. Há uma dura crítica ao jornalismo e governo inglês quanto ao incêndio de 1981, que vitimou 13 jovens negros, além, obviamente, ao braço armado do estado, a opressora polícia londrina. Uma obra cheia de solidão, deslocamento e dor, porém, elucidativa ao apresentar esperança.
E, finalizando a série, EDUCAÇÃO é inspirado na própria vida do diretor. Um episódio traumático em sua experiência escolar quando foi direcionado para turmas onde se sugeria que alunos negros deveriam seguir carreiras que envolviam trabalhos mais manuais, como encanadores, construtores ou pedreiros. Portanto, a educação é revelada como instrumento de transformação social, elevando um conto infantil pessoal para além da crítica ao racismo britânico. Ou melhor, um ato educativo em prol da própria educação.
Assim, ‘Small Axe’ é um presente para todos na luta contra o racismo, seja em protestos, na militância da rua, no meio jurídico ou na educação. E, no cinema, uma força na aliança da historiografia com o audiovisual.
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