Comecemos por algumas premissas consensuais. Primeira: a Ucrânia é um país soberano. Segunda: o território ucraniano foi invadido por forças russas. Terceira: 141 países aprovaram a resolução da ONU que condena essa invasão; entre esses estiveram todos os países da Europa, exceto Belarus e a própria Rússia, e os da América, exceto Bolívia, Cuba, El Salvador e Nicarágua (a Venezuela não participou da votação).
Arrisquemos agora uma observação: muitas vozes relevantes dos países europeus e americanos têm condenado a invasão russa. Vozes relevantes: mídia, empresas, governos. Muitas vozes. Quantas? Eis a questão: aqui é preciso certo feeling, aqui não nos resta mais que impressões. Nosso quadro, com sorte, será tão nítido quanto um Monet.
A Economist e o Le Monde, a Fox e o NYT, a Globo e a Record; o Google e a Amazon, o Morgan e o HSBC, a Apple e o MacDonald’s; Johnson e Macron, Biden e Trump, Lula e… Bolsonaro, reconheça-se, é uma voz dúbia nesse contexto. Todos os outros citados assumiram uma posição clara. A lista é exemplificativa e inesgotável. As vozes relevantes a condenarem a invasão russa são muitas, de fato. Não lembro de um outro veredito anunciado por tantas vozes. Nem em Ésquilo ouvi um coro tão coeso do ocidente.
Sim: o ocidente. Não direi, como Max Weber, que esse é o berço do racionalismo que concebeu o progresso científico, as bases econômicas e a conformação política do mundo atual. Menos ainda, como Ernesto Araújo (risos), que os ocidentais somos os filhos do herói daquele mesmo Ésquilo. Direi apenas que estamos, eu e meu improvável leitor, provavelmente imersos num ambiente cultural que se propaga desde os EUA e a Europa (aliás, ocidental). É deste ambiente que trato aqui: de suas vozes, de seu ruído. Daí tiro minhas impressões.
Sei que parece haver uma ruptura em meu método. No texto anterior eu havia invocado o julgamento da razão. Comecei este aqui com premissas baseadas no consenso. Então de repente me perco em impressões? E assim, tão distante da certeza racional, assumo como premissa a “coesão do ocidente”? Sim, por três motivos. Primeiro: eu posso compartilhá-la e assim submetê-la à prova. Segundo: eu posso assumi-la como mera hipótese – e de fato é assim que a assumo. Finalmente: reconheço o valor estético das impressões – e por que eu não me valeria desse “ativo”? Quanto um Monet não nos ensina sobre a paisagem?
A Rússia tem o maior arsenal nuclear do mundo: eis aqui outra premissa consensual. Talvez isso explique a coesão do ocidente. O medo é sempre um fator decisivo. Muitos têm denunciado – inclusive no próprio ocidente – a hipocrisia ocidental: diante de tantas nações invadidas e tantos povos oprimidos – por que só a invasão da Ucrânia causa tanta comoção? Racismo? Seletividade? Soberba? Talvez. Talvez, mais que tudo, medo.
Medo não apenas de reviver o horror da guerra. Há também, mais intenso, o medo de perdê-la. Pois se o ocidente é tão coeso ao condenar a Rússia, então assume um lado no conflito; e se é assim, do outro lado está o oriente. De repente Putin descortinou um futuro com que não contávamos: ali há os grandes impérios “bárbaros”, a grande Rússia e a grande Índia e a grande China, a grande vitória oriental.
Essa seria, eis outra hipótese, a grande derrota. Não só do ocidente: da humanidade. Seria a perda do legado ocidental: aquilo que Max Weber disse serem os frutos do racionalismo, aquilo que o herói de Ésquilo defendia na aurora dos gregos. Talvez a coesão do ocidente diante da Rússia deva-se à nossa soberba ao julgar o valor desse legado. Mas talvez não se trate de soberba: talvez esse legado seja a própria razão.
Putin descortinou um futuro que nos apavora. Não porque nos mostre as ruínas do império ocidental. Mas porque, além das ruínas, só vemos trevas.
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