Vítor Véblen: Trato com os deuses.

Sou um homem religioso. Mas advirto: minha religiosidade é complexa. Da família materna, portuguesa, recebi a fé no Deus bíblico; da paterna, norueguesa, a crença periférica em deuses nórdicos. Os cristãos mais conservadores dirão que isso é contraditório – e que a religião não admite contradições. Eu ressalvo: os deuses nórdicos são para mim o que, para muitos cristãos, são os santos: eles podem realizar ingerências pontuais na realidade. A eles, os deuses, faço demandas e queixas. A Ele, o Deus, não peço nada: apenas tento compreender seus desígnios – e sempre, sempre agradeço.

Quando Bolsonaro se elegeu, pedi aos deuses nórdicos: – fazei com que ele, Jair, tenha um mandato breve. Eu o considerava o maior erro eleitoral de nossa história; por isso, projetava um péssimo governo. Confesso, hoje, que Bolsonaro me surpreendeu: considero seu governo ainda pior do que projetei. E me pergunto, sinceramente, se isso é obra dos deuses.

Eis o que tenho especulado: atendendo à minha demanda, os deuses fizeram do Brasil, nestes últimos dois anos, um caos; essa é a forma que acharam para abreviar o governo bolsonarista. De fato, há já quem fale de impeachment. E as coisas parecem só piorar. A economia soçobra. A sociedade se despedaça. A esperança se esvai.

E há ainda, num pavoroso pano de fundo, a pandemia. Diante dela, a incompetência e o descaso do governo – aliás, dos governos. E o medo e a dor do povo. E a morte e a morte e a morte. Uma tragédia que não cessa. Um pesadelo de que não se pode despertar.

Então, aos deuses, eu rogo: – esqueçam meu pedido, eu desisto! Sim, desisto: não me importa mais quanto durará o governo de Bolsonaro. Meu pedido, que sempre esteve implícito, agora rasga minha garganta na voz inocultável: – salvem o meu povo!

Mais que um pedido, proponho um trato: se essa salvação supuser o sucesso de Bolsonaro, que assim seja; se o êxito em combater a doença significar sua reeleição, que assim seja; se a transformação de Bolsonaro em um bom governante der início a uma dinastia familiar, com sucessivos governos de seus filhos, que assim seja. Eu aceito. – É o trato que vos proponho, ó deuses!

A Deus, como sempre, nada proponho nem nada peço. Ou melhor: peço misericórdia. E agradeço, como sempre, por estar vivo e poder lutar. E confesso, de joelhos, que jamais estive tão distante de entender seus desígnios.

Vítor Véblen

Vítor Véblen é iniciado em literatura política. Viveu em Chicago, onde estudou economia. Mora atualmente em Joinville.

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