Arte

Wagner Rengel – Uma vida boa

Wagner Rengel – Uma vida boa

João tinha uma vida boa 

Boa mesmo

Tinha casa, trabalho, pequenos prazeres, família

João é casado, tem uma filha e um filho

Sua esposa diz que lhe ama

João também diz

Uma vida boa

João, mesmo com a vida boa

Boa mesmo

Não sabia o que fazer

Algo lhe deixava triste

Algo lhe deixava ansioso

Mesmo como todos seus remédios

Mesmo com todas as orientações

Coach, padre, pastor, amigo

João não sabia

Anos e anos assim

E por não saber de onde vinha

Não tinha controle

Não tinha plano

E todo plano

Não lhe tirava a pedra no sapato

João repetia constantemente

Que tinha uma vida boa

Boa mesmo

E não entendia

Não sabia

João, pobre João

Adamastor, seu amigo

Sempre dizia

É a vida que qualquer um quer ter

A vida do João

Mas a vida, essa velha louca

Lhe deu um presente

E João perdeu o emprego

E junto sua rotina

Seu lugar de admiração

Sua carreira exemplar

E Adamastor lhe batia nas costas

E dizia, João, sua vida é boa

Só precisa de outro emprego

Mas o emprego novo não veio

João já era velho demais

Metódico demais

Não tinha uma conta no Linkedin

Fez uma

Mas não adiantou

O médico aumentou seus remédios

Que João passou a comprar dos genéricos

A vida, essa velha louca

Deu a João uma chance

Que não viu

Passou

Demorou, João.

João, que tinha uma vida boa

Boa mesmo

Passou dias bem difíceis

Muitos dias

A mulher não aguentava mais

Ver João só deitado o dia todo

Chamou Adamastor

Que conversou

E depois aconselhou

Interna o João

Quarenta e dois dias

João saiu

Zero bala, disse o médico

João não dizia nada

Estava estranho

E meio que babava

Duas semanas depois foi achado de pijama no quintal

Metendo fogo nos seus ternos

Sapatos, meias, gravatas

E João dançava roda com as crianças

Ria, cantava e dizia

Nunca mais! 

Nunca mais!

Pirou, João?

Não, mamãe 

Papai agora é muito mais legal

E as crianças gritavam juntas

Nunca mais!

Nunca mais!

A mulher deu trégua, estava exausta

Largou mão e disse, se vira aí, João

João fez o jantar

Fez o café

Fez o almoço

Adamastor visitava e dizia

Você está ótimo, João

Quando João largou os remédios

E os conselhos

Sua companheira não entendeu

Preocupou

Mas acolheu

Hoje, João faz pão, bolos e tortas

Toca violão no fim do dia

Canta Ramones

Deixou a barba crescer

E sabe de cor o poema “O Corvo” 

Nas duas traduções, de Machado e de Pessoa.

Adamastor vai na sua casa toda sexta

E conhece gente estranha, diferente, divertida

Que agora são amigos do João

Pessoal lá do hospital, cochicha a mulher, que tem as manhas do que é a vida

João não tem mais uma vida boa

João tem uma vida

Era isso, diz enquanto amassa o pão

Adamastor lhe bate nas costas e diz

Que vida, João! Que vida!

(Imagem: João na época da vida boa. Carvão e Urucum em papel 300g – arquivo pessoal)

Gabriel Oliveira

Futebol brasileiro e mundial em textos com opinião, fatos e dados.

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