João tinha uma vida boa
Boa mesmo
Tinha casa, trabalho, pequenos prazeres, família
João é casado, tem uma filha e um filho
Sua esposa diz que lhe ama
João também diz
Uma vida boa
João, mesmo com a vida boa
Boa mesmo
Não sabia o que fazer
Algo lhe deixava triste
Algo lhe deixava ansioso
Mesmo como todos seus remédios
Mesmo com todas as orientações
Coach, padre, pastor, amigo
João não sabia
Anos e anos assim
E por não saber de onde vinha
Não tinha controle
Não tinha plano
E todo plano
Não lhe tirava a pedra no sapato
João repetia constantemente
Que tinha uma vida boa
Boa mesmo
E não entendia
Não sabia
João, pobre João
Adamastor, seu amigo
Sempre dizia
É a vida que qualquer um quer ter
A vida do João
Mas a vida, essa velha louca
Lhe deu um presente
E João perdeu o emprego
E junto sua rotina
Seu lugar de admiração
Sua carreira exemplar
E Adamastor lhe batia nas costas
E dizia, João, sua vida é boa
Só precisa de outro emprego
Mas o emprego novo não veio
João já era velho demais
Metódico demais
Não tinha uma conta no Linkedin
Fez uma
Mas não adiantou
O médico aumentou seus remédios
Que João passou a comprar dos genéricos
A vida, essa velha louca
Deu a João uma chance
Que não viu
Passou
Demorou, João.
João, que tinha uma vida boa
Boa mesmo
Passou dias bem difíceis
Muitos dias
A mulher não aguentava mais
Ver João só deitado o dia todo
Chamou Adamastor
Que conversou
E depois aconselhou
Interna o João
Quarenta e dois dias
João saiu
Zero bala, disse o médico
João não dizia nada
Estava estranho
E meio que babava
Duas semanas depois foi achado de pijama no quintal
Metendo fogo nos seus ternos
Sapatos, meias, gravatas
E João dançava roda com as crianças
Ria, cantava e dizia
Nunca mais!
Nunca mais!
Pirou, João?
Não, mamãe
Papai agora é muito mais legal
E as crianças gritavam juntas
Nunca mais!
Nunca mais!
A mulher deu trégua, estava exausta
Largou mão e disse, se vira aí, João
João fez o jantar
Fez o café
Fez o almoço
Adamastor visitava e dizia
Você está ótimo, João
Quando João largou os remédios
E os conselhos
Sua companheira não entendeu
Preocupou
Mas acolheu
Hoje, João faz pão, bolos e tortas
Toca violão no fim do dia
Canta Ramones
Deixou a barba crescer
E sabe de cor o poema “O Corvo”
Nas duas traduções, de Machado e de Pessoa.
Adamastor vai na sua casa toda sexta
E conhece gente estranha, diferente, divertida
Que agora são amigos do João
Pessoal lá do hospital, cochicha a mulher, que tem as manhas do que é a vida
João não tem mais uma vida boa
João tem uma vida
Era isso, diz enquanto amassa o pão
Adamastor lhe bate nas costas e diz
Que vida, João! Que vida!
(Imagem: João na época da vida boa. Carvão e Urucum em papel 300g – arquivo pessoal)
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