Arte

Werner Schön: Capilé.

Werner Schön: Capilé.

Hoje, 20 de janeiro, morreu Elza Soares. Uma das maiores cantoras da história. Guerreira nas lutas mais duras de nosso povo. Mulher encantadora, dona de um espírito livre e arrebatador. Musa eterna de todos nós.

Diante de tão triste notícia, republicamos um conto de #WernerSchön (de 27/03/2021) em que se saboreia (literalmente) a música da grande cantora. É nossa homenagem a ela. Decerto não está à sua altura; mas nos conforta o fato de que nenhuma outra estará.


Sabe, amor, sei lá. Tá rolando mais não. Tá esquisito, moribundo. Tá acabando o nosso amor. Sei lá, pensei tudo isso agora. Foi pensamento, amor, que veio descendo e me inundando. Tudo porque o Capilé botou aquele samba dum disco velho da Elza. Só pra enticar o Egon e o Durval que pedem sempre aquele chato do Cauby. Escuta que versos, amor, os desse samba. E vê se tu também não te arrepias:

Nosso amor que foi perfeito

Não é mais, chegou ao fim

Tá mais cheio de defeito

Que pastel de botequim.

Reparaste no impacto? Percebeste a precisão do fluxo? Do amor ao pastel, da perfeição ao botequim. Lembra o nosso começo, amor, no carnaval de 79? Agora pensa em mim aqui, nesse boteco, o cheiro azedo, o gosto amarelo da laranjinha que meti entre as cervejas, o Vicente discursando na outra mesa sobre a burrice do Telê. Que versos! Que delicadeza! É coisa de um Cummings, amor. E o paradoxo final, digno dum Camões: o amor cheio de vazios! Já comeste o pastel aqui do Capilé? Então saberias bem. Mas segue no samba:

Não sei mais, mas desconfio

Que batendo o pino assim,

Nosso amor ficou mais frio

Que o próprio pé do pinguim…

Lembras aquelas noites em que ficávamos lendo Laforgue? A gente ia bebendo e bebendo e passando por Rilke, Blake, Garret. Nós babávamos! As paredes do quarto ardiam! Lembras aquele cordel do Patativa? Pois é, amor, tem um tempo já que não me lês poema algum. Pedi pro Capilé tocar o samba de novo. Queria lembrar a outra estrofe:

Neste amor que semitona

Ninguém mais é de ninguém

Mais ninguém põe a azeitona

Na empada do seu bem.

Versos modernos, palavras concretas, escombros semânticos depurados e retorcidos. A sinestesia simples do amor que acabando se ouve, e do gosto sensual que já não há. Aliás, a sutil obscenidade desta observação, que assim soa ainda mais cáustica. Lirismo malandro. Compreensão cênica. A tristeza sóbria de quem sabe que vai do boteco pra casa. Também tô indo, amor! Já pedi pro Capilé a conta. Lê só a última estrofe:

Nosso amor, que foi bonito

Tá na base do ser só,

Se ele ouvir só mais um grito

Abotoa o paletó.

Repara na repetição do só. Na ressonância do ó. No botão do paletó. Tudo termina assim: só. Só um mais grito: e será silêncio após. E o amor vira pó. Desculpa, amor, mas decidi que não volto pra casa. Vou ficar uns dias no Nelo. Depois me viro. Deixo só esta carta na caixinha. E trinta cruzeiros pro gás. Se tiver que me encontrar, liga aqui pro Capilé. Te cuida, amor. Adeus.

Werner Schön

Werner Schön tenta fazer literatura. Em Jaraguá do Sul.

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