Werner Schön: O Soneto do Boteco da Marechal.

No boteco cheio de caras desconhecidas e sem máscaras, ele foi escutando, impaciente e calado, os tantos discursos sobre a doença e a política e a política e o Brasil e o Brasil e a doença. De repente, no estertor das vozes, um verso lhe roçou as orelhas.

Ele voltou a Jaraguá na pandemia. Tinha estado fora um longo tempo, vivendo a juventude em madrugadas do sul. Diós, que madrugadas! Quantos amigos! Quantos amores! Quanta viagem e quanta liberdade! Até que tocou o telefone:

“Oi.”

“Que foi, mãe? Que voz é essa? Tá ofegante por quê?”

“Tens que voltar. Agora!”

“O que houve, mãe?”

“O bichinho me pegou.”

Ele achou péssima a ideia do regresso. Mas não resistiu ao clamor materno. Fez as malas, deu adioses aos amigos, teve uma última noite com um último amor. E pousou em Navegantes numa manhã de fevereiro.

“Calor do capeta”, ele balbuciou passando em frente à Weg.

O cara do uber suspirou concordando. Estacionou numa casa dum beco da Vila Lenzi. A mãe já estava no portão expandindo-se em berros possantes:

“Meu filho, como você tá magrinho!”

“Para com isso, mãe”, ele respondeu tentando escapar dos beijos, “você tá com covid!”

“Ah, já passou, eu tô ótima”, ela respondeu corada, sorridente, saltitando com vinte quilos acima do peso ideal.

Apesar da manifesta pujança da jucunda senhora, passaram uma semana trancados em casa. Ele e a mãe. Nem um nem outro com o menor sintoma da doença. Mas ambos na mais rigorosa quarentena. E sem ar condicionado.

Ali, na solidão escaldandte, ele tentou voltar a escrever.

Passada uma semana, tinha escrito duas ou três redondilhas e milhares de mensagens de whatsapp. Nelas, não nas redondilhas mas nas mensagens, abria seus segredos a seus amigos distantes. Confessava a dor da saudade. O amargor do arrependimento. O estupor dos dias longos e quentes de reclusão. Naquele sábado, auge da melancolia, sua última mensagem dizia:

“Não sei se me mato ou se vou tomar um chope naquele boteco da Marechal.”

Os destinatários distantes da mensagem não sabiam onde era a Marechal. Mas intuíram que seria esse o destino do amigo. De fato, passada nem bem uma hora, ele sentou no balcão e pediu um caneco. Um chope APA, levemente ruborizado, fabricação local. Revigorante.

Mas se o vigor tinha voltado, o tédio não tinha sumido. No boteco cheio de caras desconhecidas e sem máscaras, ele foi escutando, impaciente e calado, os tantos discursos sobre a doença e a política e a política e o Brasil e o Brasil e a doença. De repente, no estertor das vozes, um verso lhe roçou as orelhas. Ele reconheceu de imediato: era o primeiro verso dum soneto. Puxou depressa uma folha e uma caneta. Anotou no alto: “Soneto do Boteco da Marechal”. E num só fôlego versejou:

Depois de meus anos estranhos, planos

de ver Jaraguá uma outra vez. Hoje

cedo eu falei pra mim mesmo: foge!

E fui e andei e… Adiós, Hermanos!

A primeira quadra era boa, ele achou, ainda que mentirosa. “Que poema não mente”, ele pediu a si mesmo. Ao garçom, pediu outro chope. Deu um gole longo, puxou o ar e escreveu a segunda quadra:

E aqui, o que vi? Meu Deus, arianos

Só esperando, pasmos, que o boi moje

e que seu leite em espasmos se arroje

pelas bocas, por todos os seus anos.

Esse verbo, mojar, causou-lhe dúvidas. Ainda mais assim, no subjuntivo. “Mas a rima é rara”, ele pensou enquanto dava outro gole, “siga o soneto”:

E dizem ser o sul o seu país

e juram ver a luz num Bolsonaro

e fazem, ai, de mim um aprendiz:

e aprendo tarde enfim que custa caro

não ter eu aprendido o dom não raro

de ser, longe daqui também, feliz.

Ele pôs o ponto e soltou a caneta sobre a folha. “Sim, o soneto mente”, ele pensou de novo, “mas a melancolia é autêntica”. Não sem um pouco de soberba, pegou o caneco em que teria dado o gole mais longo e merecido dos últimos tempos. Mas sentiu um tapa seco em suas costas.

“Então tu voltou, seu vagabundo? E não disse nada pra ninguém?”

Era o Adolar. Gordo e branco e sorridente como sempre. Sempre dando abraços longos e suados.

“E aí, cara, tudo bem?”

O Adolar não respondeu. Seus olhos se desviaram pro balcão. Num golpe rápido e certeiro ele apanhou o soneto.

“Então tu ainda tem essa mania de fazer poesia?”

O poeta, ou o maníaco, teria respondido qualquer coisa. Mas não houve tempo. O Adolar anunciou em voz alta o título do poema. E diante dum boteco perplexo, em voz mais alta ainda, ele o recitou de cabo a rabo.

Pra dizer a verdade, ninguém entendeu direito. O soneto tinha um ritmo heterodoxo e o Adolar não era exatamente o Maiakóvski. Talvez por isso, houve até alguns que fingiram gostar, especialmente do verso que falava da luz do Bolsonaro. E, timidamente, quase surgiram uns aplausos. Até que o Tadeu se levantou, apeou o chapéu pananá da lustrosa careca e dirigiu-se ao sonetista, grave:

“Se desprezas tanto nossa cidade, por que voltaste?”

Ele, o sonetista, teve vontade de mandar o Tadeu enfiar o panamá no canal devido. Mas reparou que por trás do chapéu vinha um homem que sabia conjugar os verbos. Então deu uma resposta polida, posto que seca:

“Porque minha mãe tá doente.”

A notícia cravou no peito do Adolar, que interpolou um berro úmido de lágrimas:

“A Dona Hilária pegou a covid?”

“Sim. Mas calma, ela tá bem.”

Houve um silêncio breve. Aí o Tadeu perguntou ao Adolar:

“Esse guri é filho da Dona Hilária?”

“Claro. É neto do velho Rocha.”

“Do Rocha da Vila Rau?”

“Lógico!”

De repente o Tadeu estava abraçado ao poeta. E o Adolar a ambos. E os três a outros tantos. E outros tantos chopes descendo da bica a tarde inteira. E todo mundo falando da política e da doença e do Brasil. E as máscaras e o soneto esquecidos pra sempre na lixeira atrás do balcão.

Werner Schön

Werner Schön tenta fazer literatura. Em Jaraguá do Sul.

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