Nada sei sobre esportes. Mas me interesso por esportistas, especialmente os mais célebres. Reconheço que suas disputas podem ser árduas, que suas vidas podem ser expostas, que seus dramas podem ser intensos – e eu me interesso por dramas. Os grandes esportistas são idolatrados, amados, invejados. Mas todos eles podem, de repente, sofrer as dores da existência.
Todos menos Gabriel Medina. Assim eu pensava. Ele sempre me pareceu “impávido que nem Mohamed Ali”, como diria o Caetano. Seu olhar sempre excessivamente focado, como se ele visse apenas sua meta. Sua postura indiferente a tudo: à pressão do público, à ameaça dos adversários, à imensa expectativa que suas disputas despertavam. Sim, eu sei: é isso que o faz um esportista tão extraordinário. Especialmente nas grandes decisões, ele era sempre imperturbável – e letal. Mas confesso: eu não gostava. Eu o achava frio. Alienado. Imerso numa bolha que lhe permitia se concentrar nas vitórias e ser indiferente ao mundo. Por trás – ou além – do desportista, eu não via homem algum.
Agora vejo. Ontem Medina me surpreendeu. Como quem desabafa ou chora, ele escreveu: “Reconhecer e admitir para mim mesmo que não estou bem vem sendo um processo muito difícil, e optar por tirar um tempo para me cuidar foi talvez a decisão mais difícil que já tomei em toda a minha vida.”
Medina cansou. Seu status de superatleta estava pesado demais. A camada de gelo se rompeu. Agora vejo: sua frieza, seu foco, sua indiferença à pressão, tudo isso era o produto de um grande esforço. Medina é capaz disso e por isso é um extraordinário esportista. Mas isso cansa. Esgota. Deprime.
Durante as últimas olimpíadas, quando tratei aqui do gesto similar de Simone Biles, escrevi: “Os homens e as mulheres capazes das mais raras proezas atléticas são, no fundo, apenas homens e mulheres. Essa é a beleza”. Eis o ponto.
O grande desportista, o gênio do surfe, agora deu lugar ao homem. Coube a este compreender o que se passa. E reconhecer a própria humanidade. E tomar “a decisão mais difícil”. Não se trata apenas de desistir de disputas ou campeonatos. Trata-se de se reposicionar, como homem, diante do mundo. De compreender que frusta expectativas multitudinárias, mas que isso é rigorosamente necessário.
Trata-se sobretudo dum gesto corajoso. A mais monstruosa onda que Gabriel tenha surfado, com suas mandíbulas afiadas e sua garganta pedra (ou de corais), não lhe exigiu tanta coragem. Ele reconheceu que não está bem. Despiu-se da armadura que o fazia parecer invencível. Expôs ao público sua verdade. Foi a decisão certa, sem dúvida. No fundo ele é apenas um homem. E essa é a beleza.
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