Opinião

Victor Emendörfer Neto: Empresas familiares

Victor Emendörfer Neto: Empresas familiares

Há poucos dias, a WEG foi homenageada na 23ª edição do Programa Empreendedor do Ano Brasil, na categoria “Family Enterprise – empresas familiares relevantes em seu mercado de atuação e cuja gestão teve um impacto positivo nos negócios e na comunidade.” O prêmio foi dado pela Ernst & Young (EY), referência em serviços de auditoria e consultoria, num evento realizado em parceria com a Revista Forbes. A notícia é interessante pelo prêmio em si, mais um que a empresa ganha; e também pela “categoria” a que a premiação se refere: “empresa familiar”. O fato de haver uma tal categoria é sinal de que as empresas familiares formam um segmento importante na economia. Ninguém duvida de que esse sinal expressa a verdade.

Em meados do século passado, um dos grandes economistas americanos – J.K. Galbraith – escrevia que as empresas familiares estavam fadadas a desaparecer. Ou melhor: esse modelo ‘familiar’ de governança corporativa estaria reservado a empresas menores. No centro do capitalismo estariam as empresas de governança tecnocrática. A palavra remete ao étimo ‘técnica’: a economia tenderia a criar grandes conglomerados corporativos, governados por órgãos técnicos especializados. O vínculo pessoal entre empresas e homens não teria mais importância. As instâncias de poder empresarial se tornariam opacas: as decisões remontariam a órgãos com funcionamento quase mecânico. As empresas seriam assimiladas às máquinas: tudo nelas funcionaria com racionalidade científica. A visão remetia à teoria dos sistemas, de Talcott Parsons, que depois se tornaria um paradigma fundamental da filosofia de Niklas Luhmann.

E, entretanto, Galbraith estava errado. Ou melhor: parcialmente errado. É evidente que o modelo tecnocrático de governança corporativa tem importância decisiva na realidade empresarial de hoje. Mas não é, como previsto, um modelo que se impôs sobre todos os outros. Há modelos em que o elemento pessoal – que remonta aos homens por trás da empresa – predomina. Entre estes, o modelo de governança familiar. Grandes empresas, no ‘very core’ do capitalismo, não deixaram de adotá-la. A WEG é um exemplo inequívoco e enfático.

Famílias e empresas são duas instituições que sempre se relacionaram. Os laços familiares não apenas definem o comando nas empresas: eles costumam interferir – intensamente – na realidade econômica e nas estruturas sociais de cada país. As gerações se sucedem e as mesmas famílias seguem ocupando os mesmos níveis – os mais altos – da pirâmide social. Laços sanguíneos interferem fortemente na distribuição do poder econômico.

Isso pode ser um problema grave. Países como o Japão e a Índia, apesar de todo o progresso econômico, tem estruturas sociais semifeudais. No Japão, alguns poucos clãs familiares parecem ainda comandar o país. Na Índia, a relação entre famílias e pode econômico se solidifica com o sistema de castas, de fundo religioso. Esses exemplos não são excepcionais: no mundo todo o poder econômico e social segue concentrado, de geração a geração, no interior de grupos unidos por laços sanguíneos. A promessa liberal, a propagandear que o sucesso só depende de seus esforços, parece ser desmentida por essa realidade.

Pode-se argumentar que o laço familiar, sobretudo no meio empresarial, não deveria ser um fator a determinar a escolha dos governantes. Qualquer estudante de administração dirá, com razão, que as empresas devem definir sua governança segundo critérios meritocráticos. Os proprietários deveriam escolher as pessoas mais preparadas para administrar suas empresas. O sobrenome dos candidatos não deveria influir nesta decisão. Pode-se escolher o melhor administrador possível, de acordo com a realidade da empresa; e então criar um conselho voltado a verificar o desempenho desse administrador. Ou podem, os proprietários, simplesmente vender sua posição. Nos dois casos o mercado vai dar os meios de selecionar os novos governantes da empresa. Família, família; negócios à parte.

Quando se fala em governança pública, não se admite outra alternativa. Não existem mais países desenvolvidos governados por famílias: os reis europeus são elegantes, fazem eventos legais e têm, vá lá, uma ou outra função “moderadora”; mas os critérios de eleição dos governantes, nesses países, são republicanos. Argumenta-se que também numa empresa deveria ser assim. Ela afeta muitos interesses. Muita gente depende da sua existência. Há razões relevantes para que os critérios a definirem sua governança sejam racionais. Não é racional escolher o administrador de uma empresa levando em conta seu sobrenome.

Entretanto, há empresas familiares que têm enorme sucesso – e justamente porque são familiares. De novo, a WEG é um exemplo. A empresa assume-se como uma “empresa familiar”. E é, de fato: a homenagem mencionada no início do artigo foi recebida por Décio da Silva, Presidente do Conselho de Administração, filho de Eggon da Silva, um dos fundadores. A pergunta é a seguinte: se não fosse familiar, a WEG teria o mesmo sucesso? A resposta negativa é a mais provável. O sucesso da empresa está ligado ao modelo de governança que remonta às famílias que a controlam. Por quê?

Basicamente porque há um comprometimento maior de seus controladores com o destino da empresa. Não se trata, para eles, apenas de uma empresa. Não é só mais um ativo a compor seus patrimônios. A empresa reúne bens que, ao menos para eles, não têm preço. O nome, a história, a reputação dessas famílias, tudo isso está envolvido. Mas não só isso: há uma certa ligação pessoal entre essas famílias e o negócio. Pensar sobre a empresa, verificar seu desempenho, projetar seu destino – tudo isso faz parte das vidas de seus proprietários. Como se fosse uma missão.

O cuidado com a empresa, então, é máximo. Não se trata apenas de técnica. Trata-se de se entregar ‘de corpo e alma’ ao projeto. A expressão é algo metafórica, mas adequada a ilustrar o detalhe essencial: o modelo familiar é o oposto da governança tecnocrática de que falava Galbraith. Ali há um vínculo mais profundo dos controladores com a empresa. As capacidades máximas daqueles são canalizadas a esta. Os recursos intelectivos, anímicos, emocionais são vertidos ao projeto empresarial com a máxima intensidade, pois a família envolve-se nesse projeto assim intensamente: ela também se entrega ‘de corpo e alma’. Parece haver um impulso atávico a unir uma família em torno de um empreendimento. A empresa familiar – uso o substantivo em sua acepção mais rica – é algo tão antigo quanto a humanidade.

Isso significa que as empresas familiares adotam o melhor modelo de governança? Não necessariamente. Não há um modelo ideal. Em empresas menos cuidadosas a governança familiar pode degenerar. As gerações se sucedem, as famílias aumentam, os primos se afastam. A coesão da família pode ruir. É preciso respeitar tradições que afastam esses riscos; ao mesmo tempo, é preciso rever os defeitos dessas tradições. O problema é complexo. As monarquias lidam com isso há séculos; e muitas vezes lidam mal. As empresas também. Pode-se escrever um livro sobre o tema. Anteciparei um pouco desse livro, que talvez um dia eu escreva, no artigo da próxima semana.

O ponto a destacar, por ora, é que há sempre fatores rigorosamente personalíssimos a interferir na governança – pública e privada. Por mais que se pense sobre isso em termos abstratos, tudo se define a partir de algo concreto: a conduta humana no âmbito das instituições. A família, como uma dimensão fundamental do homem, será sempre um fator importante a determinar o êxito dessa conduta; se a empresa for familiar, então será um fator decisivo – pro bem ou pro mal.

Victor Emendörfer Neto

Victor Emendörfer Neto é advogado.

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