Eles haviam ganho a medalha de ouro. Uma conquista brilhante, literalmente. Quase os havíamos perdoado. Todas as bobagens, toda a frivolidade, todo o descompromisso com os terríveis problemas da nação – tudo isso nós estávamos dispostos a superar. Afinal, é a seleção: todos nós já amamos, ao menos em algum instante de alguma Copa de algum ano remoto de nossa infância, a seleção. E além disso este time, o das Olimpíadas de 2021, tinha Richarlison, Paulinho, Bruno, Nino, entre outros jogadores com boas opiniões, com posições admiráveis e com traços de bom caráter. Então veio a foto do pódio e tudo, o perdão e a admiração e mesmo o amor redivivo, tudo se perdeu.
Eles subiram ao pódio com os agasalhos amarrados na cintura. Com isso esconderam a marca do patrocinador do COB, o Comitê Olímpico Brasileiro, e mostraram a do patrocinador da CBF, a Confederação… enfim, todos sabemos bem o que é a CBF. Infelizmente.
O patrocinador do COB traz recursos pra todos os atletas olímpicos. O gesto da seleção afeta todos os demais companheiros do time brasileiro em Tóquio. Muitos deles não tardaram em apontar o que poderíamos chamar de egoísmo dos nossos futebolistas. Ao contrário da imensa maioria dos outros atletas do país, os do futebol (masculino) são ricos. Nesse contexto, o descompromisso com o patrocinador olímpico soa insensível, alienado, esnobe. Tiago Fratus, nadador medalhista nestas olimpíadas, não poupou palavras: “a mensagem foi clara: não fazem parte do time [olímpico] e não fazem questão”. Fratus ressaltou especialmente a indiferença às “consequências que isso pode gerar a inúmeros atletas que não são milionários como eles”.
Fratus tem razão. Mas devemos dar nomes aos bois. Ou melhor: dar a exata medida da responsabilidade de cada uma das partes envolvidas. Há algo que está claro: o gesto da seleção foi decidido por algum dirigente da CBF. Os jogadores, embora demonstrem certo receio em revelar os detalhes, deixaram implícita essa informação. A rusga entre CBF e COI vem de tempo. Em 2008, na China, houve uma briga pra decidir qual uniforme o time de futebol usaria. Em Atlanta, oito anos antes, a mesma briga. Houve até um quiproquó entre Ricardo Teixeira e Carlos Arthur Nuzman, antigos dirigentes de ambas as entidades.
Mas no fundo, bem no fundo, a guerra é entre os próprios patrocinadores. Nas duas olimpíadas anteriores, no Rio e em Londres, não houve briga entre as entidades, nem quiproquó entre os dirigentes, nem treta no pódio. Detalhe: em ambos os eventos, CBF e COI tinham o mesmo patrocinador.
Da disputa entre os patrocinadores vem a briga entre as entidades. Dos dirigentes da CBF, a decisão de esconder o patrocínio do COB. Dos jogadores, a atitude de acatá-la. Afinal, é deles a foto: são suas 22 figuras perfiladas que compõem o gesto em questão. É uma pena. Eles fizeram um grande campeonato. Richarlisson, Paulinho, Bruno e Nino, entre outros tantos, parecem ser bons sujeitos. E tudo isso quase nos levou a perdoar a seleção. Quase.
A seleção permanece mal vista. A entidade que a controla, inclusive nos Jogos Olímpicos, cheira mal. Há algo na CBF definitivamente repugnante. Não é uma entidade identificada com pessoas ou valores morais. É apenas um circuito para o trânsito do dinheiro que alimenta os parasitas de ocasião, completamente submissos às instâncias de onde o dinheiro vem. Essas instâncias não têm compromisso com a história da seleção, com seus heróis e suas façanhas, sua nação e seu povo. Elas se comprometem apenas com seus interesses. É isso, sobretudo, o que repugna: a submissão da CBF a esse capital conspurcante.
Alguns dirão que não se pode censurar o patrocinador: ele apenas quer expor ao máximo sua marca. Todo o debate moral se restringiria à conduta dos dirigentes da CBF, que se submeteram a esse patrocinador, e sobretudo à dos jogadores, que se submeteram à entidade. Faz certo sentido essa ponderação. Mas é notável como o capital que flui nos circuitos internos da CBF, há décadas, deturpou sua arquitetura institucional, determinando uma governança sempre viciada. Ainda mais notável é o modo como esses vícios têm conspurcado a seleção – o time de futebol que veste a camisa amarela, o time brasileiro, o time que amamos (ao menos em algum instante de alguma Copa de algum ano remoto de nossa infância).
É evidente que não é o capital, em si, que conspurca. O título deste texto é metonímico. Mas também é evidente que CBF, COB, FIFA, COI e tantas outras entidades são sujeitas em demasia aos fluxos de capital que as alimentam. Há algum desajuste na relação elas e seus parceiros, que lhes vertem capitais. A feição jurídico-institucional de tais entidades, em tese sem fins lucrativos, fragiliza-as diante do assédio de atores que só visam o lucro. Com isso, suas finalidades e suas posturas são deturpadas – e elas se arriscam a perder o grande legado que administram.
Os jogadores da seleção, ao vencerem o torneio olímpico, deram mais uma importante contribuição ao legado que a CBF deveria administrar. Mas, quando escolheram se submeter ao comando do patrocinador, sacrificaram parte dessa contribuição. Todos perderam com essa postura submissa: os jogadores, a torcida, até mesmo a CBF. Menos o seu patrocinador, é claro. O capital – metonimicamente – sempre vence.
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