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Conto natalino jaraguaense (não necessariamente nesta ordem).

Conto natalino jaraguaense (não necessariamente nesta ordem).

Era véspera da véspera dum Natal do fim do século passado. O trenó com doze renas voava pela noite dum vale no hemisfério sul. Concluindo o treinamento iniciado havia meses, Noel largou as rédeas e deu um belo salto pra dentro da chaminé mais alta. 

Era a chaminé das Duas Rodas. As botas negras pisaram o chão iluminado na grande empresa. Ele ainda farejava a essência de baunilha em seu gorro vermelho quando ouviu a voz de Valter Volkes: 

“Que tu tá fazendo aí, rapaiz?”

Noel não compreendeu o “rapaiz” falado por Valter, com o erre fraco e vibrante. Embora domine todas as línguas do mundo, ele teve certa dificuldade com o português do Rio da Luz. 

“Eu sou o Papai Noel”, disse estendendo a mão a Valter, que retrucou: 

“Eu sou xerente de produçon do turno noturno das Duas Rodas”, disse com o erre fraco e vibrante, “e tu tem que saí corendo daí”. 

“Mas eu sou…”

“Non quero nem sapê”, disse Valter secamente, trocando o bê pelo pê. “Se o pessoal te vê, vão pará de trapalhá.”

“Certo, certo, eu saio. Mas preciso chamar minhas renas. Meu trenó só pode pousar num lugar completamente ermo”.

Valter tinha o cérebro quase ermo e não compreendeu o adjetivo. Noel notou a testa franzida do amigo e lhe explicou com uma doçura paternal. 

“Tá pom, tá pom”, disse Valter. “Depois do serviço eu te levo numa crota atrás do moro do Rio Molha. Lá non vai tê ninguém.” 

Noel respirou aliviado e tentou até sorrir. Mas Valter atalhou: 

“Agora tira essa roupa”, disse com o erre de sempre. “Se o pessoal te vê, vão pará de trapalhá.”

Valter abriu um armário, pegou uns embrulhos e os entregou a Noel. 

“Põe essa roupa aqui e mete tuas coisas dentro dessa polsa”.

Perplexo, Noel se despiu. Pôs suas roupas cintilantes e seu saco mágico dentro da “polsa” e vestiu as roupas entregues por Valter. Então se olhou no espelho: camisa polo, bermuda jeans, havaianas.

“Agora sim”, disse Valter enfim sorrindo, “tu parece um xaraguaense”. 

***

Às cinco e meia da madrugada saíram os dois no carro do Valter. Pararam no posto, compraram umas coxinhas recheadas, e seguiram até a Vila Nova. 

“Tomá uma”, Valter perguntou em frente ao bar. Sem esperar a resposta, estacionou. 

Quando o Oca viu Noel sentiu algum ciúme. Reparou que ele tinha a mesma silhueta, as mesmas bochechas rosadas, os mesmos olhos azuis. Foi até o armário e pegou seu melhor taco de sinuca. 

“Joga uma partidinha”, desafiou. 

“Não pratico jogos”, respondeu Noel, sério. “É contra a ética natalina”. 

Valter explodiu em gargalhadas. O Oca, também rindo, pegou uma no freezer. Ambos decidiram jogar só uma partidinha.

Jogaram sete. Valter perdeu a negra. Inconformado, desafiou o Oca a jogar outra série valendo uma caixa de brahmas. Noel aguardava impaciente e não se conteve: 

“Preciso ir até um lugar ermo”, disse enérgico. 

O Oca saiu calmamente e voltou com uma porção de rollmops. Valter serviu-se de dois. Noel fez menção de zangar-se mas não resistiu à delicadeza avinagrada do acepipe. 

“Bom isso, ein”, disse o bom velhinho. 

O Oca riu discretamente. Venceu mais quatro partidas em sequência. Então se voltou pro Noel: 

“Vai fazer o quê num lugar ermo?”

Noel engoliu mais um rollmops e respondeu:

“Pegar meu trenó. Logo mais será noite de natal!”

O Oca explodiu em gargalhadas. Já Valter, depois das derrotas acachapantes, agora estava sério. Abriu a gaveta da mesa e anunciou: 

“Vamo xogá mais uma partidinha.”

“Chega”, Noel socou a mesa fazendo estardalhar o prato vazio de rollmops. 

O bar inteiro emudeceu. Quatro caras que jogavam na outra mesa se aproximaram. O maior deles, branco e alto e gordo, deu sete passos até Noel: 

“Nóis tamo indo pro Caribaldi. Qué vim xunto?”

Noel tampouco entendia bem o dialeto do Garibaldi. Mas captou o bastante: 

“Tem um lugar ermo por lá?”

“Tem umas crota pem funda”, disse o garibaldense, trocando o gê pelo cê.

***

Ao menos no início, a viagem não foi exatamente aprazível. Tinha engarrafamento na Walter Marquadt. Iam cinco homens corpulentos dentro dum uno mile. E fazia aquele calor de Jaraguá em dezembro. Isso não bastasse, os rollmops tinham deixado Noel com os intestinos tempestuosos. 

“Meu Teus”, gritou um dos quatro garibaldenses trocando o dê pelo tê, “abre a xanela”. 

Todos riram estrondosamente. Eles eram divertidos. Noel folgou-se. Contou episódios picantes que flagrou ao descer pelas chaminés do mundo. E boas piadas da Lapônia avacalhando com os russos. 

Passando o Rio da Luz, um deles semeou uma ideia: 

“Nóis podia tomá uma lá na Malwee.”

“Malwee”, perguntou Noel franzindo a testa. 

“Tu non conhece a Malwee”, eles berraram em uníssono. 

Antes que Noel respondesse, o uno mille guinou à direita e logo entrou no parque. Noel irritou-se com a mudança repentina de percurso. Mas acalmou-se ao perceber que no parque poderia encontrar um lugar ermo. 

O parque estava cheio de gente. Pior ainda: na frente do bar, onde havia mais público, o uno mille enguiçou. 

“Pora, que posta”, desabafou o motorista socando o volante. 

Noel ficou nervoso. Sua camisa pólo ensopara-se. Sua bermuda jeans apertava na cintura. As alças das havaianas marcavam com dois riscos rosas seus pequenos pés inchados. Pensou consigo: “é só pegar meu saco mágico e tirar de lá um carro novo”. Mas logo desistiu da ideia. Não poderia usar seus poderes assim, à luz do dia, diante de todos. Era contra a ética natalina. Despediu-se secamente dos quatro caras e saiu a pé. Pela primeira vez Noel desanimou-se.

Então ele ouviu uma música. Uma candência macia. Um refrão que em inglês mal traduzido dizia assim: “Levante! De pé! Não desista da luta!” 

A música vinha dum carro em que iam dois moços. Noel fez um sinal. Eles pararam: 

“Aí, coroa, tá indo pra onde?”

“Pra um lugar ermo.”

“Tamo indo pra uma cachô em Corupá? Quer vir?”

Noel sorriu reanimado. Sentou-se no banco traseiro e cantarolou baixinho: 

“Don’t give up the fight!”

***

Enquanto isso, no mesmo bar da outra cena:

“Alô, é da PM? Aqui é o Oca.”

“Positivo. Em que posso ajudar, senhor Oca?”

“Veio um cara aqui no bar e saiu sem pagar a conta.”

“Ok. Sabe identificar o autor do crime?”

“Ele é velho e gordo e diz que é o Papai Noel.”

“Certo, senhor Oca. Qual foi o objeto do crime?”

“Ele comeu dezessete rollmops e tomou vinte duas laranjinhas.”

“Certo, senhor. Tem ideia do paradeiro do meliante?”

“Ele saiu com uns caras lá do Garibaldi. Mas não tenho o telefone deles.”

“Certo, senhor. Mais alguma informação?”

“Diz pro Comissário que quem ligou foi o Oca!”

***

De volta ao carro que rumava pra uma cachô de Corupá. Eles iam agora pela Estrada do Chico de Paulo, ou de Paula. 

“Então você é o Papai Noel”, perguntou o motorista sob a ampla aba do boné. 

“Sou.”

“Eu não acredito em Papai Noel”, disse o outro. 

O bom velhinho reparou nos óculos escuros que este usava, com uma armação rosa choque. Anotou mentalmente: “já sei o presente deste rapaz”.

“Eu já vi duende”, atalhou o motorista. “Papai Noel é tipo um duende, né?”

“Não, não sou.”

“Eu não acredito em duende”, disse o outro detrás dos óculos escuros. “E sei que o Papai Noel é tipo um duende fictício adaptado pela Coca-cola.”

“Não, não sou”, insistiu Noel levemente irritado. 

O motorista, percebendo a tensão no ar, cuidou de dissipá-la:

 “Eu acredito em mágica. Você faz mágica?”

“Só na noite de natal.”

“Abre uma brecha na lei, pô, agora é véspera natal”, disse o motorista erguendo o boné. “Faz uma magicazinha.” 

“Ainda não é natal. É véspera. E eu preciso encontrar um lugar ermo pra pegar o meu trenó.”

“O coroa nem pitou”, disse o outro erguendo os óculos, “mas tá muito doido.”

Os dois gargalharam. Na verdade, os três. Até que Noel notou luzes à frente: 

“O que é aquilo?”

“Putz, é uma blitz”, disse o motorista.

“O que é blitz”, perguntou Noel confundindo português com alemão.

O PM mandou encostar o carro. Quando a janela se abriu, a fumaça espessa e branca balançou o topete militar. 

“Todos pra fora do carro”, disse o soldado. “Mãos no capô.”

Após a revista, ele pediu os documentos. Os dois caras apresentaram e foram liberados. Noel pensou consigo: “eu poderia apresentar meu passaporte assinado de próprio punho pelo Rei da Noruega”. Mas desistiu da ideia. Isso seria um tipo de mágica. Seria contra a ética natalina.

“Não tenho documentos. Lamento.”

“Qualé a tua, velhinho? Tava fazendo o quê com os moleques? O que tu tem nessa mala?”

“Minhas roupas e meu saco mágico.”

“Ah, quer dizer que teu saco é mágico”, disse o PM armando a joelhada. “Então ele vai te fazer ver estrela.”

***

Noel acordou na Delegacia. Dois policiais o conduziram à sala do comando. 

“É esse o homem”, o Comissário perguntou. 

“É, sim”, respondeu o Oca. O Comissário virou a cadeira: 

“Quer dizer que o senhor é o Papai Noel?”

Noel ainda estava um pouco atordoado. Hesitou em responder. Apontou pro Oca e perguntou:

“Por que ele também tá aqui?”

“Sou eu quem faz as perguntas”, disse o Comissário, imperativo. 

“Porque tu não pagou a conta”, o Oca interrompeu, exaltado.

“Seu Oca, por favor”, intercedeu o Comissário. 

Noel cravou os olhos azuis no fundo dos olhos azuis do Oca:

“Conta? O que é isso? Então você cobra a comida e a bebida que dá aos outros?”

O Oca respirou fundo enquanto seu rosto avermelhava-se. E trovejou: 

“Tu tomou vinte e duas laranjinhas!” 

O Comissário arregalou-se. Noel não se abateu:

“Se tu quiseres”, disse Noel implacavelmente, “te dou quinhentas laranjinhas.”

O Oca franziu o cenho. Olhou pro Comissário, interrogativo. E disse: 

“Tu é representante da Kienen?”

“Não! Eu sou o Papai Noel, porra!”

Foi tal a ênfase da resposta que o ceticismo de ambos, do Comissário e do Oca, abalou-se. Servidos uns cafezinhos e umas aguinhas, a conversa arrefeceu. O Oca perdoou Noel após receber de presente a calça vermelha cintilante, que aliás era o seu número. Já o Comissário, embora não fosse mais criança, ganhou doze caixas de uísque escocês single malt. 

“Uma brecha na lei”, disse Noel a si mesmo enquanto pensava na ética natalina. 

***

Dispensada a lavratura de autos e termos, o Comissário liberou Noel. 

“O Senhor conhece alguém que possa vir pegá-lo aqui?”

“Valter Volkes.”

“Valter Volkes? Um que tá sempre lá no Oca?”

Noel suspirou: 

“O próprio.” 

O primeiro amigo jaraguaense de Noel apareceu na Delegacia no fim da tarde. Abriu a porta do carro e disse: 

“Eu xá sei”, disse trocando o jota pelo xis, “vamo prum lugar ermo!”

Eles saíram imediatamente e, após pararem no posto pra pegar umas coxinhas recheadas, subiram o Morro das Antenas. Noel gostou da ideia. O alto do Morro seria um lugar ermo, ermíssimo. E era linda a paisagem. E era belo o som do pássaros. E era…

“Putz”, gritou Valter. 

“Que foi?”

“Meu pneu rasgou na pedra”, disse com o erre fraco e vibrante. 

Noel uma vez mais foi tomado pelo desânimo. Ali, no meio da comunidade da Boa Vista, não haveria um lugar ermo. E ele não tinha mais idade pra subir o morro a pé. O bom velhinho sentou-se no capim à beira da estrada e olhou o fundo de seu saco mágico. Pensou nas tantas coisas, infinitas, que poderia tirar dali. Pensou nas crianças do mundo ameaçadas de ficar sem sua mágica naquela noite. Pensou na ética natalina. 

“Ah”, disse a si mesmo, “dane-se a ética natalina.”

Foi quando ouviu o barulho dum carro. Um barulho familiar. O barulho dum uno mille. 

“Vamo xunto pro Moro das Antena”, convidaram em uníssono os quatro garibaldenses. 

Noel sentou-se no meio do banco de trás. Abraçou os dois caras a seu lado. Nem bem o uno mille arrancava, começou a contar uma ótima piada da Lapônia avacalhando com os polacos. 

No alto do Morro Noel calou-se. Sentou-se no meio da pista das asas deltas. Viu novamente o vale do alto. 

“Lugar lindo”, comentou. 

Os garibaldenses concordaram acenando com a cabeça e se despediram em longos abraços. Assim que ouviu o uno mille se afastar, Noel abriu a mala e vestiu a casaca e o gorro, ambos de um vermelho cintilante. Seria seu traje completo, não fossem a bermuda e as havaianas. Apanhou o saco mágico e, quando ia assobiar convocando as renas, ouviu uma voz romper a escuridão. 

“Olha o coroa aí, mermão”, disse o motorista do carro que, mais cedo, havia sido parado na blitz.

“Se livrou rapidinho da polícia, malandro”, disse o outro.  

Noel respirou fundo. Pensou em jogá-los dentro do saco mágico e mandá-los pra Groelândia. Mas resignou-se e disse com a voz mais doce que pôde fazer:

“Rapazes, por favor, eu preciso ficar só.”

Os dois moços se olharam e explodiram em gargalhadas.

“Tá brincando, coroa? Papai Noel no alto do Morro das Antenas? Mó viagem! Vamo fazer uma selfie…”

Noel tremeu de raiva. Mas sua paciência natalina o acudiu mais uma vez. Ele foi lentamente até um dos rapazes, pegou os óculos escuros de sua cara e, abrindo a casaca, disse de braços abertos: 

“Pode fotografar!”

Os caras ficaram perplexos com o folguedo do velhinho. Encerrada a perplexidade, tiraram as fotos. Feitas as fotos, sorriram de encantamento. 

“Então”, disse Noel, “podem enfim me deixar só?”

“Tá maluco, coroa”, disse o cara repondo os óculos, “já mandei as fotos pra galera.” E completou debochando: “Geral tá subindo aqui pra ver o milagre de natal.”

A raiva então venceu Noel. Ele soltou um urro medonho que fez se curvarem as embaúbas. E saiu correndo pela trilha em direção ao Morro do Meio. 

Os dois moços se olharam perplexos. Ficaram assim, mudos, por um longo tempo. E ainda hoje juram ter visto, naquela noite, um trenó dourado voar em torno do Pico. 

Mas ninguém acreditou. 

Werner Schön

Werner Schön tenta fazer literatura. Em Jaraguá do Sul.

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