Arte

Doha, Dostoiévski

Doha, Dostoiévski

Comprei o “Notas do Subsolo” no aeroporto de Curitiba. Li num só fôlego enquanto sobrevoava o Atlântico. Pousei em Doha arregalada. Ler o livro foi um erro terrível. Dostoiévski quase me custa a viagem.

A viagem, eu sempre soube, teria prós e contras. O Catar não é exatamente o paraíso da cidadania, menos ainda pra uma mulher. Mas tem a tal força da grana que ergue (e destrói) coisas belas. Tem também a magia da Arábia. E tem a Copa. O mundo reunido celebrando o esporte e arte. É bacana a Copa, admito. Mesmo que eu entenda tanto de futebol quanto o Bolsonaro de Dostoiévski.

Maldito Dostoiévski! Se Hegel descobriu na consciência um poço sem fundo, aquele maldito mergulhou nesse poço – e trouxe à tona monstros sórdidos. O narrador de seu livro é atormentado pela própria consciência. Esse tormento nos atinge – a nós, leitores – e devasta todas as nossas ilusões. A razão, a felicidade, o amor: palavras vazias, delírios românticos. A esperança na humanidade é uma mentira.

Se nossa mais sagrada esperança agora me parecia uma mentira, imaginem Doha! Afinal, é a cidade erguida no deserto por capricho dum déspota bilionário. Uma desilusão foi corroendo todo meu horizonte. Tudo me soava como uma grande ficção: a cidade, o evento, as pessoas. Principalmente as pessoas de verde e amarelo, muitas delas de um tipinho bem característico e muito em voga nos convescotes de nossa elite e nas portas de nossos quartéis. Mais que tudo, eu questionava a mim mesma: o que afinal faço aqui, no Catar, fingindo indiferença a toda a farsa montada pelos magnatas do futebol e do petróleo?

Dostoiévski é fogo. Mas temos – nós, humanos – que ressurgir das cinzas. Então de repente se ouve o tambor. As pessoas se abraçam. Desperta a alegria mais genuína. De repente, na grande festa, soa uma música atávica. Foi o mesmo Hegel quem disse: “aqui está a rosa, aqui vamos dançar”. Dancemos.

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