No sábado à noite, depois de comer oito dúzias de marisco, entornar meia caixa de brahmas, bebericar uma luisalvense aveludada e aguentar o empate do Botafogo, eu me encaminhava ao necessário e merecido sono. Então tocou a campainha. Era o Juca, segurando uma garrafa de Rosè e vestindo a camisa da Argentina.
– Por que tá fantasiado de gringo? – perguntei bocejando.
– Serjão, hoje é o dia.
Ele não me deixou opção. Entrou sem pedir licença, sentou-se no sofá e ligou a TV. Exigiu silêncio durante o hino. Se não resisto bravamente, ele me obrigava a beber rosè. Abri outra brahma e, nem bem eu começava a ver o jogo, o Di Maria meteu o gol.
– Golaço – ele berrou extasiado.
Ele de fato torcia pra Argentina. Pra ser honesto, acho legal. Bacana. Isso me lembra o dia em que meu neto decidiu usar brinco. Ele veio me dar a notícia temendo minha reação. Eu só perguntei: “em qual orelha?” Perplexo, ele apontou a esquerda. Eu completei: “ah, então tá tranquilo”. Usar brinquinho, tomar rosè, torcer pra Argentina: acho legal, sinceramente. É diferente. Me diverte.
– Legal essa modinha de torcer pros gringos – comentei tentando atenuar a tensão do Juca. – Melhor que usar sapatênis.
– Pô, Serjão, para com isso. Tem nada de modinha. Torço pra Argentina desde a Copa de 2006.
Parei pra pensar. Minha memória anda péssima com esse Alzheimer. Mas lembrei: ele de fato aderiu à moda há tempo. Desde então, além de rubronegro, ele se diz alviceleste. Conheço bem o Juquinha, mas não sei explicar o porquê disso. Acho que ele passou a torcer pra eles só nos espezinhar. Ou talvez por uma certa necessidade de se distinguir da massa. Soa requintado torcer pra Argentina. Juquinha bebericou a taça de rosè e, adivinhando minhas dúvidas, largou:
– Sou um contestador da brasilidade e do pachequismo.
Dei uma fungada longa e respondi como quem admite uma triste verdade:
– O que seria de nós, os alienados, se não fossem vocês, os luminares?
Ele notou meu sarcasmo. Ficou puto. Vociferou palavras duras:
– Vais torcer pro time da CBF, Serjão? Pra essa camisa amarela que vestiu as hordas fascistas? Pra esse time que representa o país que aceitou sediar essa copa por trinta dinheiros, enquanto chora meio milhão de mortos? – a voz dele tremelicava de dramaticidade. Ele então arrematou: – és um bolsonarista também, Serjão?
Dei um longo bocejo, uma coçada na nuca, e respondi:
– Claro que não. Mas essa camisa já foi vestida por muitos torcedores de todas os lados da política. E por muitos jogadores, também de todos os lados. E, pra dizer a verdade, a gente não sabe o lado desses aí que jogam agora. Em todo caso, tu torces pro Flamengo, o clube com a diretoria mais alinhada ao governo. E até há pouco estavas na flamimimi pedindo a contratação do Renato, o treinador mais abertamente bolsonarista do país.
Juquinha ficou mais vermelho que a rosé. Levantou-se e berrou:
– É diferente! O time da CBF é liderado pelo Neymar, que é um bobalhão, um babaca, um escroto! O cara não presta, não tem caráter, não tem moral. É um péssimo exemplo pro povo brasileiro!
Pensei comigo: dizer que um jogador é um péssimo exemplo me soa tão bolsonarista. Um gênio, do futebol ou da arte ou do pensamento, tem que ser admirado por sua genialidade. Não tem que ser exemplo pra ninguém. Não tem essa obrigação. Salvador Dali foi indiferente à perseguição de Garcia Llorca. Heidegger, à de Hannah Arendt. Rimbaud traficava armas na Abissínia. Péssimos exemplos, mas grandes gênios. Agora vou eu crucificar Neymar porque apoia o Bolsonaro e usa roupas ridículas?
Mas me calei. Não soube o que responder ao Juquinha. Não sei o quão babaca Neymar é. Nunca me interessei por sua biografia. Sempre só me ative ao que ele faz em campo. E, pra falar a verdade, nunca gostei muito. Sempre o achei um jogador sem lucidez, sem a inteligência dos grandes craques, indigno da alta linhagem da camisa 10 da Seleção.
Isso até agora. Nessa Copa América sem graça o que mais me surpreendeu foi o futebol do Neymar. Achei que ele jogou muito. Na final inclusive. Seu jogo amadureceu a olhos vistos. E digo mais: essa derrota deve fazer bem a ele. Vai trazer menos bajulação e mais cobrança. Vai aumentar a gana. Vai clarear o rumo. Ano que vem tem a Copa. Sei não…
– E aí, vais ficar mudo? – provocou o Juquinha.
– É, amigo – respondi imitando o Galvão Bueno – como é bom perder da Argentina!
Ele não entendeu o troça. Mas riu mesmo assim. Eu fingi que gostei quando o juiz soprou o apito. E brindamos sinceramente, com uma taça de rosè e um copo de brahma, a vitória alviceleste.
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