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É proibido chover

É proibido chover

Era sexta e sempre sou feliz nas sextas. Mas chovia. A previsão tinha dito sol. Eu me preparei pra uma longa caminhada, dos molhes do Atalaia ao canto de Cabeçudas. Eu sempre sou feliz nas caminhadas. Mas chovia. 

Tirei os tênis e calcei as pantufas. Sentei no sofá ao lado da garrafa térmica. Abri no aifone as notícias do mundo. Bolsonaro, genocídio, corrupção: não me interessa. Economia, astrologia, meteorologia: não me interessa. Polícia, variedades, futebol: ops, incrível, achei algo interessante sobre futebol! Neymar disse algo. Algo estúpido, pra variar: ele proibiu os brasileiros de torcer pra Argentina. Eu nem sabia que haveria o jogo entre os dois times. Não sabia que há uma tal copa américa. Pra dizer a verdade, nem sei direito quem é o Messi. Mas Neymar sempre me chama a atenção: sua juventude alienada, sua babaquice perfeita, sua estupidez. A estupidez de Neymar me interessa. Mais do que isso: me incita. Se eu suportasse futebol, veria o jogo e torceria pra Argentina. 

Não suporto futebol. Mas gosto de ver as pessoas vibrando e sofrendo por seus times. Aprecio a loucura de torcer. É toda uma paixão, uma entrega, uma caminhada cega atrás das cores de uma camisa. Nos limites dessa loucura, na ação de torcer, não existem “proibições”. Não existe moral. Não se trata de permitir ou não: apenas se torce e, a rigor, nem mesmo quem torce pode reprimir o impulso dentro de si. Neymar não sabe, mas não faz sentido proibir os brasileiros de torcer pra Argentina. A paixão existe antes das regras que Neymar ou qualquer outro queiram impor. 

Não faz sentido proibir a paixão. Xerxes, o rei persa, aprendeu amargamente: não há razão pra açoitar as ondas do mar. Sua fragata se perdeu numa tempestade mediterrânea. O rei declarou o mar culpado. Mas as ondas gargalharam sob o estampido dos açoites. Também a paixão gargalha diante juízos repressores. Ela existe no reino do ser. Ela é ou não é. Se ela deve ser ou não, essa é uma questão posterior. Ela é indiferente à resposta que se dê a essa questão: a paixão do torcedor é indiferente a Neymar. Tanto quanto o mar ao julgamento de Xerxes. 

Tanto quanto a maldita chuva ao meu julgamento. Eu queria uma manhã de sol. Caminhar dos molhes do Atalaia ao canto de Cabeçudas. Eu queria a regra mais draconiana que decretasse: “é proibido chover nas sextas”. E um juiz, ou um carrasco, que açoitasse as nuvens transgressoras. Mas que diabos estou dizendo? Chove: e isso é tudo.

Ou não. De repente o raio de sol toca a face negra do café. Abriu o tempo na sexta. Houve um arco-íris pra lá do costão de Cabeçudas. À noite haverá estrelas. No sábado, outra manhã talvez ensolarada. E à tarde, no jogo, alguns brasileiros torcendo por Messi completamente indiferentes à censura do Neymar. Tanto quanto o mar e a chuva e talvez o arco-íris, todos tão indiferentes a mim.  

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