Nesses dois anos de pandemia eu sinto como se fosse um enorme intervalo que se encerrou há pouco tempo. Um tempo que parece encapsulado, fora do resto do tempo. Nós trabalhamos, comemos,enlutamos, dormimos, nos reerguemos e ouvimos as notícias mais absurdas, as ideias estapafúrdias e as homenagens maisobscenas. Uma ou outra eu me lembro e queria esquecer de todas.
Lembro vagamente das aulas on-line das minhas filhas, um horror autorizado por ser o que era possível fazer. Um faz-de-conta catastrófico que até hoje é lembrado não em detalhes, mas nos efeitos em crianças em processos de alfabetização.
Não lembro do que fazia cotidianamente, nem dos pormenores nos aniversários, nos eventos em exceção das rigorosas práticas de esterilizações de tudo, de distâncias de tudo.
O famigerado álcool gel, do bom ao melequento, veio para ficar e ficou.
E o Átila falava em lives das perspectivas do fim do mundo e eu não lembro o que ele dizia, mas meus compadres traziam as notícias. Quis bloquear ele no Instagram. Era demais. Já bastavam os gráficos, os desmandos, o Dória dançando, mas que trouxe a vacina, e eu dizia que votaria até no Dória ou no Cabo Daciolo, não importa, desde que tirasse aquele inominável do poder. Acho que o ódio faz mais memória.
É tão longe para mim os tempos anteriores à pandemia. Eu era feliz e nem sabia (clichê, eu sei). Tenho em mim uma imagem de que eu era jovem e vivo há três anos atrás e agora me sinto velho, caseiro, poucos amigos, família. Um certo tédio, um certo ódio, um certo “eu não sei mais como se faz”, uma certa esperança caída, coitada. Preciso me lembrar de viver. Eu esqueci? Ou se vive agora como pode, levando essas memórias e os esquecimentos adiante?
Acho que esqueci como fazia e talvez sejanecessário reinventar, recomeçar, relembrar. Não dá para voltar e recomeçar a vida à partir de março de 2020.
Lembro do último dia em que fui ao consultório. Lembro da viagem pela Europa em janeiro e a peste vindo atrás de nós. Ouvíamos ruídos de um vírus novo e não dávamos atenção. Lembro que voltamos da praia num final de semana de março e tudo se fechou. Acabou. Mas não lembro de como fazia para estar no mundo, não lembro de como me sentia sem a nuvem de um isolamento, sem a imposição de distâncias.
Quando vejo fotos das minhas filhas naquela viagem, naquela praia eu tenhoum susto. Como elas cresceram. Aonde estávamos quando isso aconteceu? Não lembro.
Voltar à vida talvez seja esquecer do que ainda está por aí, como pequenos entulhos pela casa onde a gente tropeça e empurra com o lado do pé para um cantinho empoeirado, mas não sei como faz para jogar fora. Eu não lembro como se faz para esquecer.
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