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Entrevista com um índio*

Entrevista com um índio*

Justamente no “dia do índio” ele apareceu. Notou que tínhamos dúvidas. E que estávamos cada vez mais distantes das respostas. Ele não gosta de perguntas. É sempre um desafio traduzir o pensamento que aprendeu com seus ancestrais: “fazer essa mediação entre os que vivem fora e dentro deste mundo cheio de racionalidade é ocupar um lugar de constante conflito.” Mas ele notou em nossas dúvidas algum desespero. E, talvez piedoso ou talvez espantado, deu as respostas esperávamos.

Quem são os “índios”?

Se você conversar com os sábios dos Krenak, dos Guarani, dos Xavante e perguntar “O que quer dizer o nome do seu povo?”, eles vão dizer “ente humano”, “nós”, desmantelando a ideia de indivíduo e dando oportunidade de conversarmos com o rio, com a montanha, com outros seres que não são os eletivos humanos.

Quem são os “brancos”?

Um contingente muito numeroso disso que chamamos de população do planeta, 7 bilhões e tanto de pessoas, [que] vive rotinas alienadas ou alienantes, em que de manhã elas sequer olham onde estão. Não olham se o céu está nublado, se vai chover. Muitas, inclusive, nem olham o céu, porque vivem em condições urbanas e de condicionamento. Entram e saem de caixas.

Por que os “brancos” não conversam com o rio, com a montanha, com outros seres?

Porque alguém elegeu este lugar como se fosse um clube. E, se você quiser fazer parte desse clube, vai reforçar a predação do planeta andando pelo mundo como se fosse a única inteligência viva da Terra. É uma racionalização absurda do pensamento.

Eles esqueceram de conversar com a terra?

Como diz Davi Kopenawa no livro A queda do céu (Companhia das Letras), os brancos escrevem livros porque têm o pensamento cheio de esquecimento.

Assim esquecida, o que acontece com a terra?

Se você olhar um lago que não recebe água de fora e acompanhar ao longo do tempo o que acontece com ele, vai ver que aquela água apodrece. Estamos passando por uma transformação assim no planeta, mas a maioria das pessoas não está vendo. Se tem uma parte de nós que acha que pode até colonizar outro planeta, significa que eles ainda não aprenderam nada com a experiência aqui da Terra. E eu me pergunto quantas Terras vamos ter que consumir até essa gente entender que está no caminho errado.

Como a terra reage?

A Terra seguir seu caminho é uma possibilidade de desafiar a centralidade que o ser humano se pretende. Faz com o que essa centralidade seja posta em questão. É a ideia do Antropoceno [teoria de que as ações humanas mudaram profundamente o funcionamento do planeta e que isso constituiria uma nova era geológica]. Então, se o pensamento dos seres humanos acerca da vida aqui no planeta ficou tão atomizado ao ponto de nós ameaçarmos as outras existências, a Terra pode nos deixar para trás e seguir o seu caminho. Gaia é esse organismo vivo, inteligente, e que não vai ficar subordinado a uma lógica antropocêntrica. Ele dispensa a gente.

“A gente”? E o seu povo? E os povos indígenas?

Os povos indígenas sabem onde é seu território antes de os brancos chegarem aqui. Pensando para frente, o que nossos povos têm que produzir é uma capacidade de intervenção na vida geral para além dessa ideia de tutelados e reivindicar um tipo de cidadania global. Nós somos os povos da floresta, exercemos uma florestania. Onde tiver floresta no planeta, somos nós. A gente expande o nosso mundo. Tem floresta no planeta inteiro.

Qual a situação dos povos indígenas brasileiros hoje?

De 2018 para 2019 entramos numa terra sem lei. Então é pior numa terra sem lei. Antes tinha lei. Antes eles tinham que fazer uma medida provisória, tentar fazer uma emenda na Constituição, mas agora não precisam de mais nada disso. Simplesmente botam fogo na Amazônia, param de demarcar terras, extinguem a Funai, acabam com o ICMBio. É uma descarga de arrasar.

Pode ser mais concreto?

Recebi esta semana um pedido de ajuda da Paraíba para uma comunidade não reconhecida como indígena numa “quebrada” de lá. A pessoa me dizia que eles estão morrendo de fome e de covid. São 130 famílias, que não são assistidas por ninguém, e queriam que eu fizesse uma campanha de donativos para eles. Eu pensei: caramba, é o tamanho da população da minha aldeia. Eles não são reconhecidos pela Funai, nem por ninguém, e não têm o atendimento do Distrito Sanitário Especial indígena (DSEI). Logo, não foram vacinados. Quer dizer, se essas 130 famílias morrerem, não vão entrar nesse número. Mas os povos indígenas vão sobreviver à pandemia.

Por que tem tanta certeza?

Ou você ouve a voz de todos os outros seres que habitam o planeta junto com você, ou faz guerra contra a vida na Terra. As pessoas que estão guerreando contra o meu povo estão guerreando contra a vida na Terra. Quando me lembro disso, eu me fortaleço, fico forte.

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*Esta “entrevista” é ficcional. As respostas são extraídas de entrevistas – reais – dadas por Ailton Krenak à Revista Cult, à DW e ao Jornal da UFRGS. É possível que as respostas, tiradas do contexto original, não preservem exatamente o sentido pretendido por Ailton. Entretanto, nossa intenção foi potencializar o alcance de suas declarações, sem jamais distorcê-las. Sugerimos, em todo caso, a leitura integral das entrevistas nas fontes citadas.

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