Sempre gostei da Seleção. Em 50, depois da pior derrota da história do futebol, passei a gostar mais. Em 58, na maior vitória que eu jamais tinha visto, mais ainda. Em 70, na maior vitória que o mundo já viu, eu praticamente beatifiquei a camisa amarela. Na década seguinte tivemos grandes jogadores, mas não grandes times. Em 82 tivemos um grande time, mas uma derrota ainda maior. Em 94 tivemos a vitória de Romário e seus guerreiros. Em 98, o início da era protagonizada por Ronaldo: o título de 2002, a frustração de 2006, os grandes times com Rivaldo, Cafu e Roberto Carlos. A partir daí veio a penúria. Desde 2010 tivemos times sempre indignos da nossa tradição. Pior: nosso único craque tem sido Neymar – que até tem virtudes enquanto jogador, mas parece ter muitos defeitos enquanto homem.
Ainda assim eu segui gostando da Seleção. Os argumentos dos seus detratores jamais me convenceram. “A CBF é corrupta”, diz um deles. Respondo perguntando: “e a FIFA? E as outras Confederações? E os Clubes? Por trás do cenário vistoso das quatro linhas, onde não há corrupção?” Meu interlocutor insiste: “os jogadores da seleção só pensam em dinheiro”. Respondo perguntando novamente: “e todos os outros jogadores, nos Clubes ou nas Seleções, pensam em quê? Quem não pensa em dinheiro? Você?” Desafiado, esse mesmo interlocutor vocifera em brados e gesticulações exasperantes: “são os Clubes que pagam os salários dos jogadores, as seleções os exploram”. Errado: “as seleções os convocam e eles decidem se aceitam; é verdade que, se eles aceitarem, os Clubes são obrigados a liberá-los; mas tudo depende da decisão deles, jogadores”.
Há um argumento, entretanto, mais difícil de responder. Ele afirma que o futebol entre equipes nacionais está fadado à extinção: “no futuro”, diz, “não haverá mais Seleções, só Clubes.” Esse argumento me desconcerta. Não sei o que vai ser do futuro. Não consigo constatar tendências e conjeturar cenários. Apenas respondo: “pode ser”. E completo num tom melancólico: “mas espero que não”.
Espero que nunca acabe o futebol de Seleções. Por duas razões. A primeira: as Seleções têm uma história tão ou mais grandiosa que a dos Clubes: não há por que interrompê-la e armazená-la num museu. E a segunda razão: existe, no futebol de Seleções, um outro modo de distribuir as forças: entre os Clubes, os mais ricos são os mais fortes; entre as Seleções, não. Pode parecer romântico, mas acho sempre lindas as vitórias dos sul-americanos sobre os europeus, apesar do abismo econômico entre uns e outros. Messi jamais dará um título mundial a um Clube argentino; mas pode dá-lo à sua nação. Pode parecer (ainda mais) romântico, mas acho que essa palavra – “nação” – tem nessa frase um sentido bonito.
Ao fim dessa minha resposta, a que acrescento um toque de comoção, meu interlocutor reflete em silêncio. Ele pensa na história das Seleções. Nas Copas do Mundo. Em Pelé e Maradona, em Beckenbauer e Paolo Rossi. No azul, no branco, no amarelo das lendárias camisas. Então sua convicção vacila. Ele pesa suas memórias: surgem imagens do Asteca, do Sarriá, do Rose Bowl. São imagens vivas e fundamentais. Ele se dá conta de que sua paixão por futebol deve muito a essas memórias. E chega a uma conclusão rigorosamente existencial: essas memórias, essa paixão, isso diz muito sobre o que ele, meu interlocutor, é.
E assim venço a discussão. Consigo impor meu ponto de vista: sigo tendo o legítimo – sublinho este adjetivo – direito de torcer pela Seleção. Afinal, se posso gostar do futebol de Seleções, posso seguir gostando da Seleção pra que sempre torci – até porque ser um vira-casaca é a mais hedionda depravação que pode cometer um apaixonado por futebol.
Ontem, entretanto, foi diferente. Eu perdi a discussão. Meu interlocutor, o mais constante e incisivo que jamais enfrentei, fui eu mesmo. Ontem, esse velho antagonista me convenceu: não dá mais! A Seleção ganhou o jogo. Teve uma boa atuação. Deixou manifesta sua superioridade. Mas não estávamos preocupados com o jogo. Queríamos saber da nação.
A nação chora meio milhão de mortes. Há dias os jogadores lançaram no ar, afetando respeitosa consideração por essas mortes, uma esperança redentora. Não era um ato político. Era a perspectiva de um gesto público e histórico de luto. Uma pequena mas importante consolação.
Mas a perspectiva desfez-se no ar. Nenhum grande gesto se produziu. Ao contrário: o capitão do time disse palavras apáticas; o treinador, um discurso todo manchado de clichês. A Seleção ganhou o jogo. Mas nós perdemos um pouco mais da pouca esperança que nos resta.
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