Arte

Noite do Soninho

Noite do Soninho

 Somos “quatro velhas”, diria meu neto com um deboche rude igual ao do avô. Somos mesmo: quatro velhas muito amigas, ativas e vacinadas. A vacina foi o que nos deu a ideia. Débora, já com setenta e cinco primaveras, tomou primeiro. Sandra, com setenta, em seguida. Carla tem a minha idade mas, metida que é, foi pra Miami se vacinar. Eu fui a última. Somos “quatro velhas imunizadas”, disse Débora no grupo do whats, “podemos enfim nos encontrar”.

Combinamos tudo: o cardápio, as bebidas, o aluguel dum apê em Piçarras. Queríamos sair de nossas casas. Queríamos passar um dia inteiro e uma noite inteira papeando. Queríamos voltar àquela antiga brincadeira de criança: a noite do soninho.

E assim fizemos. Dias depois estávamos as quatro de pijama, na sala ampla do apê, bebendo vinho e jogando conversa fora:

-Bati.

-Não bateu.

-Bati, sim.

Carlinha sempre rouba na canastra. Ou sempre tenta. Se bem que ela talvez tenha se enganado. Anda enxergando tão mal que não distingue a dama do valete.

-Não quero mais jogar – disse Sandra largando as cartas na mesa. – Vamos ver o Jornal.

-Eu não vejo mais a Globolixo – disse a Carlinha. – O Jornal Nacional só ataca o Presidente. E a novela é uma pouca vergonha! Uma imoralidade! A Globo quer acabar com as famílias!

Débora deu um murro na mesa:

-Esse Presidente não vale nada! É como todos os outros! Farinha do mesmo saco!

Carlinha se levantou em defesa do mito. Estava pronta a dizer uns impropérios. Eu intervim:

-Gente, vamos mudar de assunto.

Por um instante não tivemos mais assunto pra comentar. Nós nos olhamos e ninguém soube o que dizer. Houve um silêncio longo e constrangedor.

-Vamos fazer pipoca? – propôs Sandra.

Ninguém topou.

-Vamos ver um filme? – convidou Débora.

Ninguém topou. Carlinha então se atreveu:

-Vamos chamar um gogoboy?

Sandra abriu a boca de perplexidade. Débora soltou um sorriso matreiro. Eu perguntei:

-O que é um gogoboy?

-Elas me desferiram um olhar arregalado.

É um cara que faz streaptease e fica de sunguinha – disse Débora, cada vez mais sorridente.

Fechei os olhos tentando figurar a cena. Imaginei meu ex-marido, careca e barrigudo, dançando em cima da mesa. De sunguinha.

  • Gente, não sei se é boa ideia – eu ponderei.
  • Ah, Cecília, você sempre melando nossos planos! – reclamou Carla.

Eu não conseguia tirar da mente aquela visão bizarra: meu ex-marido fazendo streaptease. Tentei pensar em outras coisas. Fechei os olhos e as imagens giraram como num polidance. Me veio de repente a visão do Bolsonaro de sunguinha. Dançando funk e reclamando da Globo.

  • Gente, desculpa, mas realmente não consigo – eu disse novamente.
  • Cecília, deixa de ser careta! – Carla me recriminou. – Uma sacanagem de vez em quando não faz mal a ninguém!

Débora então fechou o semblante. Não gostou das palavras de Carla. E comentou, sarcástica:

  • Depois é a Globo que é imoral!

Carla se enfureceu. Com o dedo em riste, deu um pequeno sermão misturando vários temas – bíblia, moralidade, família e streaptease. Concluiu dizendo que eu e Débora éramos parte de um movimento que ameaça a pátria amada e a civilização ocidental. Ou vice-versa. Algo assim.

  • Era só o que faltava, trazer um cara pra cá! – replicou Débora. – E se ele for um assaltante?
  • Se o STF deixasse o Presidente governar, eu teria uma arma pra nos proteger – respondeu Carla babando de raiva.  

Imaginei Carlinha defendendo a gente num assalto. Com um revólver na mão! Ela não distingue a dama do valete, mas iria acertar um tiro na sunguinha do assaltante…

Não contive a gargalhada. Débora riu também. Carla se calou, desarmada e constrangida. Sandra só disse:

  • Meninas, vocês não querem mesmo uma pipoca?

Todas aceitamos. E nos sentamos no sofá sob uma única coberta de lã. E vimos até o fim uma comédia romântica no SBT.

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