Talvez fosse uma manhã de julho. Talvez fosse lua nova. Talvez houvesse ali mais ninguém: somente Jean Baptiste, seus pinceis e suas tintas. Sua perspectiva, retratada na tela, sugere que ela estava no Quilombo. Talvez esse lugar, em 1827, já se chamasse assim.
Em 1827 meus avós eram novamente miseráveis. Não que antes disso não fossem: meus avós eram netos dos carijós dizimados, eram filhos dos açorianos desterrados, eram os escravos do Congo: talvez eles então já morassem ali, no Quilombo, no canto distante da longa praia da Armação. Mas agora eram mais miseráveis, pois a Armação estava falida. Já não havia nem mesmo a riqueza dos senhores. A miséria era vasta, pervasiva, total.
A tela de Debret é talvez o melhor retrato da Armação do Itapocorói no século XIX. Decerto melhor que a descrição de seu coetâneo e conterrâneo, Saint-Hilaire, carregada de preconceitos eurocêntricos. Debret destaca o cenário. O azul e o verde. O branco isolado das construções. O preto pontual das duas baleias e de seus rebocadores.
Ainda se rebocavam baleias em 1827. Mas agora sem ímpeto capitalista da indústria. Agora apenas para que eles, os meus avós, extraíssem o óleo e a carne. A luz e o alimento. Talvez então eles tenham reparado dos cardumes de tainha, tão melhores ao paladar. Talvez agora as heranças carijó e açoriana e congolesa, as memórias coletivas dos povos de três de continentes, tenham se fundido numa luta por sobrevivência. Talvez enfim tenha nascido, então, o grande protagonista desta nossa história: o nosso povo.
Debret, naquela manhã fria de 1827, não viu nosso povo. De meus avós, sua tela retrata apenas as longínquas silhuetas. Personagens irrisórios e sombrios de uma ampla composição cheia de luz. Nossa história tem que inverter essa perspectiva. Deste cenário, paradoxo da miséria do homem e da fartura verde e azul da natureza, uma outra composição deve ser extraída. A luz tem que se concentrar nesses personagens. As cores mais vivas têm que estar em suas faces: o branco nos risos e nos medos, o rubro na raiva e na paixão, um tom translúcido nas lágrimas e no suor.
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