A nova música de Billie Eillish – “Your power” (“Seu poder”) – contém um enigma. Tento decifrá-lo. Não consigo.
Tente não abusar de seu poder
Eu sei que nós não escolhemos mudar
Você pode não querer perder seu poder
Mas tê-lo é tão estranho
Este é o refrão. A tradução é minha (confira o original aqui). Pode haver imprecisões. Seu poema parece ser feito de memórias: “eu me sinto tão vulnerável ao expor esse poema”, diz Billie, “eu o tenho tão perto do coração”. Também ela é uma tradutora. Também seu poema pode ser impreciso. Intencionalmente impreciso. Há memórias que não podem ser expostas.
Ela disse que você era um herói
É o primeiro verso da primeira estrofe. O enigma envolve três pessoas. A primeira parecia um herói, mas é um vilão. A segunda, uma garota, teve sua vida arruinada por ele. A terceira é a própria Billie. O poema parece contar a história entre o vilão a vítima. A poetisa fala ao primeiro, a quem trata por “você”; e sobre a segunda, simplesmente “ela”. Ambos são personagens de uma relação íntima que os liga intensamente:
Ela estava dormindo com suas roupas (suas roupas)
Mas a relação parece não se esgotar nas duas pessoas. A própria poeta se insere no enredo. Ela, Billie, não é só a narradora: há um “eu” atuando no poema.
Eu pensei que eu fosse especial
Você me fez sentir como se fosse minha culpa que você era o diabo
A poetisa e o vilão também têm algo entre si. Também eles estão envolvidos. A culpa talvez seja esta: a poetisa talvez roube o vilão da vítima. Se bem que não há roubo. A relação entre a vítima e o vilão não está acabada. Billie é também uma vilã: ambos, a poetisa e aquele a quem ela escreve o poema, escolheram não mudar. Ambos sabem que a situação se prolonga, sempre mais culpável:
Isso o mantém no controle? (no controle, no controle)
Pra você mantê-la numa prisão?
O poema fala da idade dos personagens. Parece extrair disso uma explicação. O vilão é alguém mais velho. A vítima, jovem. Muito jovem. Talvez sua idade proibisse a relação. Talvez o vilão será demitido em razão disso.
Você só vai se sentir mal se eles quebrarem o contrato?
Três pessoas se envolvem. A vítima, o vilão, a poetisa. É um triângulo amoroso? Talvez. É real? Biográfico? Billie faz confissões? Talvez. Eu disse que havia um enigma. E disse que não consigo decifrá-lo.
Billie talvez compartilhe conosco uma vivência do início de sua maturidade. Mas não se pode subestimar os dons metafóricos de sua poesia. O tema é a relação entre os três personagens. A força que os envolve é o poder do vilão. Há uma vítima: a jovem. Há uma narradora, também uma vítima, mas ciente de tudo: a adulta, recém adulta – a própria Billie. O poder que submete as duas, a jovem e a adulta, é diabólico: envolvente, cínico, destrutivo. Mais que tudo, é incapaz de sofrer a dor que ele próprio causa. É o mal absoluto, sem fragilidades ou concessões: diante dele, só resta a ela implorar – delicada, melancolicamente – clemência.
No fim da música o refrão se repete. Mas o último verso muda:
Tente não abusar de seu poder
Eu sei que nós não escolhemos mudar
Você pode não querer perder seu poder
Mas poder não é dor.
A dor é delas, de ambas, as que sofrem o poder e seu abuso. Na mesma declaração sobre essa música, acima citada, Billie concluiu: “Isso é sobre muitas situações diferentes que nós todos testemunhamos ou experimentamos. Espero que isso possa inspirar mudança. Tente não abusar de seu poder.”
Há um enigma no fundo do poema. Mas a mensagem, que se lê em sua superfície, é bem clara.
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