Opinião

Rei de Copas

Rei de Copas

Embaralhei, cortei, virei a carta: era o Renato Gaúcho. Bom jogador. Ponta atrevido. Teria ajudado em 86 não fossem os problemas com o Telê. Mas a verdade é que nunca teve futebol pra ser titular da seleção. Como treinador talvez chegue lá. Ele agora tem quatro ases na mão: BH, Gabigol, Ribeiro e Arrascaeta. Um ataque pra consagrar qualquer técnico. Quadra imbatível. É pôr na mesa e recolher as fichas. 

O cara da tevê disse que o Renato é o Rei de Copas. O treinador recordista de vitórias na Libertadores. Pensei comigo: ele é no máximo um sete de paus. Renato é boboca, boquirroto, blefador. Com esse elenco do Flamengo, até o Joel Santana: “Bruno to the left, Gabi to the right, Arrashca in the middle”. É moleza ajeitar esse time. Se os sete estiverem em campo, já era. Os sete caras: os quatro ases mais os três valetes – Felipe, Rodrigo e Diego, o goleiro. Se todos eles jogarem, repito, já era. Nem sempre eles estão todos juntos: esse foi pra seleção, aquele tá machucado, aquele outro tá negociando a renovação. Se algum deles tá fora, o time cai de rendimento. Mas se esses sete caras vêm a campo, é só fazer canastra. Canastra real. E bater. 

O médico falou que jogar baralho é bom pra lidar com o Alzheimer. Eu que já gostava tô jogando mais que nunca. Mas o Alzheimer me embaralha as coisas. De repente me vejo carteando com o Renato. Ele cortou um duque de espada. É o Isla, lateral irregular. Lixou um oito de ouro. É o Andreas, coringa, cai bem no jogo. Comprou um três de paus. É o David, o Luiz, que pode formar uma boa trinca mas também pode melar o bate. 

Em todo caso, é uma boa mão. As onze cartas são boas. E tem o morto. Vitinho, Michael, Tiago e Diego. Além do Pedro, que pode virar manilha. Truco, gritou o Renato. Ele tem boas cartas, tinha mesmo que trucar. Mas o Abel responde: seis! Ele pôs o Felipe Melo na primeira rodada pra empatar. Tem um três de copas paraguajo. E tem o Dudu, que é manilha. O jogo vai se decidir na próxima rodada. Renato gritou: nove! O gajo retrucou: doze!

Tem gente que gosta do Renato, do Abel, desses bobocas que blefam. Eu não. Não suporto. Eles começam a entrevista e eu desligo a tevê. Então embaralho, corto, viro a carta: é um dez de espadas. A Cármen, taróloga, diz que é a Roda da Fortuna. Talvez. A mim parece um ponta-de-lança dos anos setenta. Altivo, solene, mortal: um Ademir, um Zico. Tenho saudade do jogo que girava em torno de grandes cartas. Saudade dos grandes times. Saudade do Palmeiras do Ademir e do Flamengo do Zico. Aquilo que era jogo. Do dez ao ás de espada. Cada time era uma seguida real. 

Mas o cara chamou o Renato de Rei de Copas. O Renato! Os caras têm dito que o time atual do Flamengo vai superar o de 81. Os caras têm certeza de que o Palmeiras de hoje já superou a Academia. Pode ser. É relativo. É sempre um mesmo baralho mediando qualquer disputa, em qualquer tempo e qualquer lugar. Os ases de hoje não são os de agora. Mas ases são ases. Talvez um Gabigol seja mais decisivo do que foi um Zico. Cada um tem seu contexto. Cada carta tem seu jogo. Já dei um “all in” com um par de setes. Um par de setes pode ser forte no futebol brasileiro atual. 

Dou as cartas novamente. O médico falou que jogar baralho é bom pra lidar com o Alzheimer. Tenho uma boa mão. Não me restam muitas rodadas. Saboreio o jogo e a cerveja. Desligo a tevê. Penso na partida de Montevidéu. O Alzheimer me embaralha as coisas. Compro um coringa. Pego o morto. Faço uma canastra real. Lembro num rasgo das nove décadas de espadas e copas. Do jogo que sempre se joga. Do futebol e do baralho traduzindo a vida no campo e na mesa. E dou mais um gole. E bato.

Serjão Santana

Serjão Santana jogou futebol amador em Itajaí. Fã dos irmãos Rodrigues, abraçou a crônica esportiva. É marcilista e botafoguense.

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