Opinião

Serjão Santana: A superliga, os ricos e o Juca.

Serjão Santana: A superliga, os ricos e o Juca.
Na faixa os dizeres "Criado pelos pobres, roubado pelos ricos"

Neste domingo convidei o Juca pra pescar. Fomos no meu barquinho ao som debochado do motor de 30HPs. Rumei ao Caixa D’aço, em Porto Belo. Ali pesquei muito nos anos 60. É uma baía tranquila e cheia de pedras onde se escondem garoupas. Ou melhor: escondiam-se. Hoje ninguém mais se esconde ali. Meu barquinho fundeou no meio duma procissão de iates altos brancos barulhentos. A fumaça da péssima música se misturava ao som das churrasqueiras. Caras feiosos usavam álcool, açúcar cristal e sungas enquanto meninas bonitas faziam coreografias esquisitas no convés. Comentei com o Juquinha:

– Gente rica é tão ridícula.

Ele não respondeu. Lia compenetrado uma notícia no celular. Notei que se tratava de algo grave.

– Criaram a superliga europeia de futebol – ele exclamou de repente.

– O quê? Que liga? Quem criou?

Os maiores clubes do mundo. Os três maiores da Espanha. Os três maiores da Itália. Os seis maiores da Inglaterra.

Juquinha parecia extasiado. Pensei que fosse porque uma moçoila dançava uma música de letra obscena na proa duma lancha. Mas não: o êxtase vinha da tal liga. Da superliga. Da união dos maiores do mundo.

– E o Bayern, não tá entre os maiores do mundo? – perguntei. – E o Paris? E o Botafogo?

– Pô, Serjão!

– O Baryern não é o atual campeão da Europa? O Paris não é o vice? E o Botafogo não é o time que teve mais jogadores em copas do mundo?

– Sempre com esse mesmo papo, né? O Botafogo, a tradição, o passado. A superliga é o futuro, Serjão! O futuro!

Não sei se era por causa da purinha de Luís Alves que trouxéramos, mas os olhos do Juquinha brilhavam.

Futuro de quem? – perguntei.

– Como assim? Que pergunta é essa? É o futuro da elite do futebol mundial!

– A elite são os doze clubes?

– Sim. E quem quiser se juntar a eles.

– E se o Botafogo quiser?

Ele se desconcertou. A conversa quase teve fim. Mas retomei:

– A superliga fará um torneiro?

– Sim. Fará um campeonato com vinte times. Duas chaves de dez. Se não me engano, os três primeiros de cada chave se classificam e o quarto e o quinto disputarão uma repescagem…

– Quem criou essa fórmula? – interrompi. – O Nabi Abi Chedid?

– Vai ser um sucesso – ele vaticinou, cheio de razão.

– E a FIFA? E a UEFA? E as confederações? Vão aceitar?

– Não. A briga vai ser grande.

O semblante do Juca então se recolheu em reflexões. Aproveitei seu silêncio e propus algumas questões:

– Quem vai ganhar essa briga? Os doze clubes? A FIFA? Haverá um armistício regado a dólares e espumantes rosès?

Ele salivou quando falei dos rosès. E alcançou uma resposta concisa e lapidar:

Vai ganhar a briga quem tiver mais dinheiro.

– Então os vencedores serão os barões dos grandes times europeus. Os russos, os árabes, os magnatas que têm poços fundos cheios de grana mal cheirosa.

Ambos sentimos, então, um mau cheiro no ar. Algum playboy derrubou um tubo de lança-perfume na churrasqueira. A tarde avançava barulhenta e fedida.

Eles vão chegar num acordo. A FIFA e a superliga. O passado e o futuro.

Achei poética a frase do Juquinha. Mas contestei:

– E se não chegarem? E se a briga perdurar por décadas?

– Aí a superliga vai vencer. Os doze clubes são muito grandes. A tendência é ampliarem esse grupo e ficarem…

– A tendência é os ricos vencerem? – interrompi de novo.

– Sempre vencem.

Então ouvimos uma sirene. Era a polícia. A música se apagou e as churrasqueiras calaram-se. Só se ouviam os caras de sunga, bêbados e avermelhados, esgrimirem argumentos patéticos.

– Sim, os ricos devem vencer – eu concedi. Mas então o que será? O que restará do futebol além do seleto grupo de elite? O que será do Botafogo e do Flamengo, do Boca e do River, de todos os outros times do mundo deixados na outra margem do abismo aberto pela superliga?

O coração do Juquinha deve ter palpitado quando falei no Flamengo. Era sua paixão de infância, depois trocada pelo mise-en-scène do Barça. Sempre resta um pouco das paixões de infância em todo coração.

– Quem sabe o Flamengo – ele cogitou com um brilho redivivo no olhar – seja convidado a participar do banquete?

Olhei em volta. Cada iate branco e alto fizera um banquete durante a tarde inteira. Eu e o Juca, sentados no barquinho à rés-do-mar, não recebemos um convite. Não nos ofereceram um camarão sequer.

– Chega de cachaça! – eu respondi em tom áspero. – Vamos embora.

Puxei a linha e de novo não veio peixe. Não pegamos nada. Zarpamos logo depois da polícia. Os iates permaneceram. A má música e as churrasqueiras reacordaram. Os caras de sunga ergueram panças nababescas em meio às coreografias das meninas.

– Os ricos sempre vencem – disse o Juquinha, meditabundo.

Eu segui no leme. À toda velocidade. Apenas ouvindo o som debochado do motor de 30hp.   

Serjão Santana

Serjão Santana jogou futebol amador em Itajaí. Fã dos irmãos Rodrigues, abraçou a crônica esportiva. É marcilista e botafoguense.

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