Opinião

Serjão Santana: Quarenta metros de razão

Serjão Santana: Quarenta metros de razão
Gerson (Flamengo), Gérson (Seleção) e Kroos (Real Madrid)

Depois do jogo, no domingo, peguei a tarrafa e fui pescar no Atalaia. Desci até a velha pedra do molhe em que faço o ponto. Tirei a tarrafa de dezoito braças, paneei com calma cada palmo do pano alvo da rede e atirei longe, no exato ponto onde sei haver um poço fundo. Velho e barrigudo, eu ainda jogo a tarrafa como poucos. Os chumbos batem na água como num dedidalho de piano. A rede esgarçada abre uma circunferência de quarenta metros de diâmetro sobre o mar.

Não peguei nada. Sentei na pedra. Acendi um cigarro. Me senti desconcentrado. O jogo ainda em minha mente. Os pênaltis. Aquele maldito goleiro do Flamengo buscando mais uma taça. Não sei por que me aborreço. Foi um bom jogo. O Flamengo é enfim um bom time no futebol deste país, que sofreu duas décadas na mais famélica pobreza. Gérson e Diego fazem uma boa meia-cancha. Os quatro da frente são realmente bons. Não tem por que me aborrecer, pensei comigo. Foquei na água funda do Itajaí. Não se pega peixe sem concentração.

Em vão. Quando dei por mim, tinha na mão outro cigarro, na outra um copinho duma pura, e na cabeça o futebol. Pensava agora em outro jogo. O que chamam de “el clássico”, entre Real e Barcelona. Eles jogaram no sábado. Também esse eu vi. Foi muito ruim. Muitíssimo. Deprimente. Então é isso o futebol atual? Se “el clássico” define esta era, é esse o legado que ficará pra posteridade? Dembelê? Éder Militão? Serginho Dest? Por que o futebol decaiu tanto? Por que o tempo foi tão cruel com o esporte – e tão devastador com a arte? Chega disso, pensei comigo. Armei a tarrafa e joguei. Os chumbos dedilharam sobre a água lisa da barra do rio.

Não peguei nada. Acendi outro cigarro e também minha razão. Percebi que meus pensamentos eram contraditórios. Se “el clássico” foi deprimente, o clássico de logo antes, entre os dois melhores times do Brasil, havia sido muito bom. A vitória do Flamengo me aborrecia, mas o futebol do time me agradaava. Velho chato, pensei comigo sobre mim mesmo. Minha chatice às vezes exagera-se.

Joguei de novo a tarrafa. A vasta boca de quarenta metros. Não peguei nada exceto um pensamento. Uma lembrança, na verdade. No meio da semana eu vi o jogo entre o Real, o mesmo Real Madri, e o Liverpool. Nesse jogo, um lance duma beleza antiga, clássica, apolínea. O meia alemão dos espanhóis faz um lançamento de quarenta metros pro Vinícius, que acolheu a pelota no peito e definiu. Golaço! Me veio à mente o Gérson. Não o que joga no Flamengo, mas o outro: o semideus que distribuiu bolas aladas na Copa de 70. Tem gente que diz: ele fazia aquilo porque não tinha marcação. O Kroos, no lance que citei, também não tinha. A diferença é que ele buscou a bola mais atrás, entre os zagueiros; e que a zaga do Liverpool estava com a linha “alta”. Mas são os mesmos quarenta metros.

Sim, eu tinha razão. Total razão. Quarenta metros de razão! É uma questão artística. Semideuses são atemporais. Um Gérson, hoje, também distribuiria bolas aladas. E abriria horizontes. E talvez até fumasse um cigarrinho no intervalo. A genialidade dos antigos não é o produto da vida fácil que lhes permitiam os indolentes adversários. É a genialidade pura, eterna, que pode reaparecer a qualquer hora. E que deveras aparece.

Joguei a tarrafa uma última vez. Notei o agito na água. Senti as batidas no pano. A vasta boca da tarrafa caiu sobre a malha de tanhotas. A pescaria se consumou. Arrumei as coisas e colhi os peixes pra ir embora. Fumei mais um e tomei mais uma. Um pensamento leve e claro agora me atingia. Leve como a brisa fresca de leste. Claro como a gratidão pelo tempo que vivi – e ainda vivo.

Serjão Santana

Serjão Santana jogou futebol amador em Itajaí. Fã dos irmãos Rodrigues, abraçou a crônica esportiva. É marcilista e botafoguense.

Comentários:

Ao enviar esse comentário você concorda com nossa Política de Privacidade.